Rui Pinto, a diretiva que (ainda) não é lei e a pressão internacional
A diretiva europeia hoje aprovada sobre o estatuto dos denunciantes pode ou não afetar o caso de Rui Pinto em Portugal? Provavelmente, não. Mas ajuda a pressão internacional que está a ser exercida sobre as autoridades portuguesas.
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Há uma série televisiva de advogados que me enche as medidas: chama-se Boston Legal. Estive para escrever que era uma série sobre a Justiça, mas há por ali tanta paródia que de Justiça só terá uma enorme quantidade de metáforas sobre o quotidiano dos que a ela recorrem. Mas é uma série com finais felizes, com sentenças inusitadas e compaixões de muito género.
Os casos de promiscuidade entre a política e o futebol têm espaço em todas as divisões, em todas as modalidades, em todo o território nacional.
Paródias à parte, é no enredo transversal às cinco temporadas da série que se percebe o quanto um advogado competente, bem conhecedor das leis e das suas manhas, pode condicionar a vida das pessoas, das empresas e das motivações sociais ou socioeconómicas de uma família, de uma comunidade ou até de um país.
O advogado não aprova leis, dirão. Quem aprova, em Democracia, são os deputados, os políticos. E é verdade. São os políticos que as aprovam e as consideram, ou não, necessárias às regras da cidadania. Se calhar, por isso, anda o PS e o PSD (e os restantes partidos com assento parlamentar) a discutir, por estes dias, quais os limites a traçar entre o poder das sociedades de advogados e a forma como se fazem "representar" no próprio Parlamento. Uma espécie de "diz-me por quem te sentas, dir-te-ei o que podes condicionar".
Não tenho dúvidas, porém, sobre o papel fundamental da advocacia no Estado de Direito. Mas, convenhamos, quando o poder político não consegue equilibrar as forças que o podem condicionar (e é legítimo que o tentem, desde que se percebam as intenções), pode sempre acontecer o que aconteceu em Itália, em meados de 90: o justicialismo fez cair os podres da Política (a queda dos socialistas italianos é histórica), mas abriu as pernas aos populismos de gente como Berlusconi e, mais recentemente, aos movimentos neofascistas, que protegem interesses corporativos travestidos pelos interesses das pessoas, que continuam a culpar "os políticos" que há muito não gerem a Itália. É o famoso argumento do "eles".
Por exemplo, como seria possível saber-se o que aconteceu no BPN e no BES se não tivesse havido testemunhos de gente com "culpas no cartório"?
O que é que isto tem a ver com o desporto, sobretudo com o futebol? Bem, o futebol há muito que é uma praça viva de interesses político-financeiros. Sempre foi uma simbiose tão grande que nunca se sabe quem começa primeiro a gerir interesses próprios ou corporativos: se os políticos (dos autarcas aos jotas em ascensão), se os dirigentes desportivos. Os casos de promiscuidade entre a política e o futebol têm espaço em todas as divisões, em todas as modalidades, em todo o território nacional. Em muitos casos, a mesma pessoa é as duas coisas: político e dirigente desportivo. Há exceções, até bastantes. Claro que há, felizmente. Mas ainda são exceções.
Por via do Football Leaks e pelo aprisionamento preventivo de Rui Pinto, que é um dos colaboradores da plataforma das denúncias que um consórcio europeu de jornalistas tem vindo a investigar, Portugal tem o seu quadro jurídico sob tensão no que diz respeito à chamada delação premiada e/ou ao estatuto de denunciante. Algo que existe em países como a França, a Bélgica e os Estados Unidos, mas não existe em Portugal, pelo menos de forma estrutural e legislativamente definida. Porém, há casos e casos. Por exemplo, como seria possível saber-se o que aconteceu no BPN e no BES se não tivesse havido testemunhos de gente com "culpas no cartório"?
A aprovação de hoje, pelo Parlamento Europeu, de uma diretiva que visa proteger os denunciantes, fixando um objetivo geral que todos os países da UE devem alcançar, pode vir a ter influência na forma como o caso Rui Pinto estará a ser tratado na Justiça portuguesa. Não porque a diretiva tenha a ver diretamente com o caso pelo qual é suspeito: tentativa de extorsão ao fundo desportivo-financeiro Doyen e crimes informáticos. Esta diretiva afeta diretamente apenas os putativos denunciantes que pertençam às organizações que denunciam.
As diretivas não são lei, mas obrigam a que os Estados façam ou reajustem leis nesse sentido.
Mas, à custa de outra diretiva europeia, relacionada com o branqueamento de capitais e crimes de corrupção, e da força que as duas juntas podem gerar, é natural que surja maior motivação das pressões internacionais, nomeadamente das procuradorias francesas, belgas, suíças e norte-americanas, no sentido de se considerarem "maiores" os alegados crimes que Rui Pinto denuncia face aos de que pode ser acusado.
Conforme a própria eurodeputada Ana Gomes hoje afirmou, este é um caso ao abrigo do artigo 38 de uma outra diretiva europeia, cuja última alteração é de 2018, que já previa a defesa dos cidadãos cujas denúncias entronquem em eventuais processos de branqueamento de capitais e financiamento de terrorismo. E, nesse particular, os Estados devem obrigar-se à proteção do denunciante.
Para já, e para que não se confunda diretiva com legislação em vigor, é importante saber-se que a primeira implica o ajustamento do quadro legislativo dos Estados-membro da União Europeia aos ditames dessa mesma diretiva. Não é lei, mas obriga a que os Estados façam ou reajustem leis nesse sentido. E têm dois anos para o fazer. Caso os Estados-membro falhem essa implementação, a Comissão Europeia pode agir formalmente em termos disciplinares contra os países, nomeadamente no Tribunal de Justiça da União Europeia.