Pôr alma na tática
Descalço na Catedral: Se tivesse de sugerir algum acrescento ao 4x4x2 de Bruno Lage seria isso: o ânimo de um sempre-começo.
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Anda por aí muito cidadão pasmado com o excedente que Mário Centeno promete no Orçamento de Estado de 2020, mas uma beleza económica mesmo de embasbacar é o golo que Pizzi inventou contra o Braga, na quarta-feira.
Num espaço mínimo, entre dois defesas, o craque do Glorioso recebe a bola com a naturalidade de quem recebe um "olá"; passa-a de um pé para o outro como se cumprisse o gesto quotidiano, distraído, de quem aperta os atacadores antes das escadas rolantes do metro; e, de repente, zás, chuta a redondinha, rasteira e cruzada, nem forte nem fraca, só venenosa, para a baliza, transformando o tal "olá" num belo "olé". Isto tudo num metro quadrado de relva. Talvez seja minimalismo mas não se trata de coisa pouca, caros amigos. É o equivalente futebolístico a esculpir a Vénus de Milo dentro de uma caixa de fósforos. Que maravilha. Uma economia de gestos, uma simplicidade de génio. Além do mais, estávamos a perder e aquela obra de arte virou o jogo. A chuteira de Pizzi encosta na bola e, pelo mundo inteiro, os benfiquistas começam a sentir o coração a levantar-se: vamos ganhar isto, caramba.
E ganhámos mesmo. Tenho cá para mim que o segundo golo - aquela espécie de remate de Carlos Vinícius que passou aos tropeções por baixo do guarda-redes do Braga com a matreirice de uma palavrinha sussurrada no momento certo - só foi possível porque o coração do Benfica se levantou com o 1-1 do nosso capitão transmontano, Luís Miguel Fernandes Pizzi. Não me interpretem mal, caros leitores: o golo de Vinícius foi de gabarito, feito de grande alma, grande pulmão e chuteira afinada. E o passe de Adel Taarabt, a desmarcar o brasileiro, foi um momento de maestro, de holofote, de antologia. Pois, não me interpretem mal: o que quero dizer é que a única coisa que falta a este Benfica é trazer esse ânimo pós-golo do Pizzi para os noventa minutos de todos os jogos.
Quando desce esse espírito sobre a equipa, todos - de Tavares a Chiquinho, de Rúben a Cervi - se elevam ao máximo de si próprios, e somos imparáveis. Não é exagero nenhum, é a mais pura das verdades. O grande adversário deste Benfica é o excesso de confiança, o tédio, o funcionarismo... Ando em ensaios de teatro e tenho pensado um pouco no trabalho dos atores. O grande trabalho dos artistas do palco não é tanto lembrarem-se do texto - essa tarefa que, para nós que estamos de fora, parece impossivelmente monumental. O grande trabalho é conseguirem esquecer-se dele - para o dizerem sempre como se fosse a primeira vez. Se tivesse de sugerir algum acrescento ao 4x4x2 de Bruno Lage seria isso: o ânimo de um sempre-começo.