PLANETA DO FUTEBOL - Uma análise de Luís Freitas Lobo
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1 - A importância dos números nas camisolas tem uma carga mística no futebol ao ponto de, para os teólogos da bola, ser possível identificar um jogador por essa simbologia nas costas. Ela traduz uma posição e, acima disso, um estilo.
Estar atrás da bola é mais importante do que estar à frente do adversário
Mas há cada vez mais jogadores que não levam uma vida normal em campo e isso, atualmente, reflete-se muitas vezes numa existência disfuncional em relação à que devia ser, por natureza, a genética numérica que transportam.
O "falso 9" tornou-se tão habitual que passou a ser uma mentira sincera que hoje qualquer adversário mais atento sabe detetar (e travar). Diferente é quando o disfarce nasce de outra casta.
Vejo a estreia do Tottenham na Premier League e, sem o seu ponta-de-lança "serial killer puro", Harry Kane, lança nesse espaço um exemplar que parece brincar com o número na camisola. O espécimen truculento é o coreano Son. Como não há nada de falso nele, a pergunta é inevitável: pode um verdadeiro ponta-de-lança jogar com o n.º 7 e continuar ainda assim a fazer numericamente sentido?
A resposta, vendo os seus excessos de vida solitária e excecional com conforto mais do que evidentes em todos os momentos e tipos de jogo (em cunha entre centrais adversários, recuando para fugir a marcações ou arrancando veloz na exploração espacial do contra-ataque) é que sim, pode, sem dúvida.
2 - O n.º 7 foi (ou é) sempre símbolo de alguém inalcançável que corria pelos espaços livres do campo, sobretudo as faixas (nostalgia dos velhos n.º 11, o número dos extremos) mas também de quem enganava a todos com movimentações imprevisíveis e surgia na zona de remate com um gesto implacável. Son tem tudo isso no seu jogo.
Lançado no centro da frente de ataque dum 4x3x3 seguro atrás por pilares defensivos fortes e apoiado desde as faixas por outros dois "mentirosos do zig-zag diagonal" (Lucas Moura e Bergwijn), traz com ele um estilo que parecia perdido. Eu explico.
O que sinto quando vejo Son com a bola é algo que me faz recuar a um tempo em que para o mim o futebol se centrava essencialmente em olhar para os pés dos jogadores e tentar adivinhar em que momentos eles iriam mudar de ritmo (no fundo, meter outra velocidade) e deixar os adversários para trás com uma finta e um arranque. Eram (são) os instantes mais eletrizantes dum jogador num jogo.
3 - Para Son, o jogo podia, portanto, resumir-se a uma jogada. A mais bela, decisiva e que faz levantar o estádio. Assim foi, no golo (o solitário da vitória) que marcou juntando todos aqueles elementos de "futebol mítico" referidos até agora.
Este coreano que, em 2010, aterrou em Hamburgo vindo do exotismo futebolístico asiático (num programa de cooperação com a federação asiática para promover jovens com potencial) conserva o sorriso meio trocista (sem ter varinha mágica) que faz o mistério destes jogadores. É maior até do que o do número.
O n.º 9 é o numero a que todos os goleadores aspiram (como símbolo de reconhecimento e estatuto de relação com o golo) mas a Son tal nunca lhe interessou. Nem faria sentido que assim fosse. Não é o jogador mais elegante em campo mas sempre deixa os defesas para trás e, num abrir e fechar de olhos, ganha-lhes metros de vantagem. O n.º 9 não joga assim em tantos metros e Son queria algo mais. Queria uns metros mais. Precisa deles.
Em síntese, numa frase: estar atrás da bola é mais importante do que estar à frente do adversário.
4 - O jogador tem a bola no treino e pergunta ao colega: "Aposto que a meto no ângulo mesmo desde aqui". Está, claro, numa posição demasiado descaída. "Quanto queres apostar?", pergunta. "Não tenho nada agora para apostar", respondem-lhe. "Ok, apostamos a nada. Olha...". E, então, remata colocado e enfia a bola mesmo no ângulo.
Ganhou a aposta. Mas, qual? Não se apostara nada. Apostara sim. A sua forma de olhar e viver para o jogo.
É Son. Quando a bola lhe chegar, reparem, nada de ansiedade. Apenas sorri, sorri sempre.