VISTO DO SOFÁ - O cronista Álvaro Magalhães escreve hoje a propósito de uma proposta da Liga para o regresso ao futebol dos lugares de pé e das bebidas de baixo teor alcoólico.
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Li a notícia neste jornal: os clubes das nossas duas ligas profissionais querem que, já na próxima época, se possa vender cerveja nos estádios (o que já é permitido nos jogos da Liga dos Campeões e da Liga Europa) e também que os mesmos estádios passem a dispor de zonas para espectadores em pé (o que também já acontece nalguns países).
Ora bem, peão e cerveja sempre fizeram parte da cultura popular do futebol. Foi só em 1976 que o peão do Estádio das Antas deu lugar a uma bancada e, pelo menos até ao final dessa década, havia adeptos que levavam para os jogos malas térmicas carregadas de cervejas. Foram banidos ambos, o peão e a cerveja, quando o futebol se aburguesou e se fez entretenimento selecto, para ser fruído de um modo mais civilizado e confortável, como um qualquer espectáculo (o cinema, o teatro, a ópera).
Comecemos pelo novo peão. Já não se trata daquelas zonas planas e inóspitas de onde só se via a bola quando ela andava pelo ar, mas de bancadas em escada, com corrimões protectores, a que chamam, pomposamente, "safe standing". Só não existem cadeiras individuais, as quais, com a sua ordem e formalidade, incitam ao comportamento circunspecto e contido, transformando adeptos participantes em espectadores domesticados e passivos.
Os adeptos actuais continuam a tradição, apesar da proibição, só que o fazem antes do jogo - e excessivamente -, já contando com o que não vão poder beber a seguir.
O que é comum ao velho e ao novo peão, além de se permanecer em pé, naturalmente, é um modo ancestral de viver o jogo mais intensamente. Onde as zonas de "safe standing" já existem (por exemplo, o "muro amarelo" do Westfalenstadion, do Borússia Dortmund), são o habitat de claques e de adeptos mais comprometidos com o jogo, que apoiam a equipa de um modo efusivo e contagiante. Estão, pois, associadas à ideia de adepto vibrante e sofredor, o que se torce todo (torcedor é como se designa o adepto no Brasil), em função do que se passa no campo. Só assim é possível fazer parte do acontecimento: ser um acólito. E isso é incompatível com a acomodação numa cadeira.
Agora, a cerveja. No início do futebol moderno, já perto do final do séc. XIX, quando ele foi adoptado pelos operários fabris ingleses, os quais fundariam a categoria fundamental do adepto, o jogo estava intimamente ligado ao consumo de álcool, dada a sua clara inscrição no tempo do lazer e da licença criadora. Mas essa simbiose vinha já do passado longínquo, quando o futebol era apenas um ritual propiciatório da fertilidade que terminava com um banquete e a consequente embriaguez colectiva.
E mesmo os adeptos actuais continuam a tradição, apesar da proibição, só que o fazem antes do jogo - e excessivamente -, já contando com o que não vão poder beber a seguir. Esse é, aliás, um dos argumentos dos peticionários: se esses adeptos bebem cerveja na mesma, então que o façam no estádio, propiciando essa receita extra aos clubes, que até são patrocinados por várias marcas de bebidas alcoólicas.
Peão e cerveja, pedem eles. Parece irrelevante, mas, quem sabe?, pode muito bem ser o início da revolução que abalará o fútil estilo de vida do futebol actual. De pé (e com um copo de cerveja na mão), ó vítimas do asséptico futebol burguês!