Opinião de Ricardo Nascimento
Corpo do artigo
Há histórias que pedem banda sonora. Esta, por exemplo, devia começar com o genérico de uma sitcom dos anos 90. Um balneário, um árbitro a beber água, um televisor que não se desliga e um clube acusado de "tentativa de coação". Riso enlatado. Fade out. Entra o genérico.
Sim, o relatório de Fábio Veríssimo descreve que, no intervalo do jogo, havia um televisor a mostrar repetição de um lance que arbitrou. E que o árbitro não conseguia desligá-lo. Confesso: já vi episódios do Black Mirror com enredos menos surreais. Por falar em surrealismo, convém lembrar que é o mesmo árbitro que, em 2019, depois de um Benfica-FC Porto polémico, reconheceu "não estar num bom momento" e pediu dispensa por tempo indeterminado. O problema é que agora tudo isto é tratado como uma questão de direito disciplinar, matéria que me interessa, porquanto dou aulas de direito desportivo.
Vejamos, juridicamente falando (e prometo que não vos adormeço), o artigo 66.º do Regulamento Disciplinar das Competições Organizadas pela LPFP, que fala em "coação". Mas coação, em termos jurídicos, é coisa muito séria. Exige intenção, constrangimento e, sobretudo, que o árbitro faça mesmo algo porque foi coagido. Não basta a "tentativa de pressão". Ora, um televisor teimoso não é, ainda, um instrumento de tortura psicológica. Na pior das hipóteses, estamos perante um crime de abuso de eletrónica doméstica, previsto no Código Penal do Bom Senso. Não consta que Veríssimo tenha sido amarrado com cabos HDMI, nem que o VAR tenha enviado sinais subliminares tipo "valida o golo ou o plasma explode".
Se formos rigorosos, o mais que pode haver aqui é uma infração leve ao dever de hospitalidade. Uma multa, talvez uma repreensão, ou um "aviso para futuro comportamento televisivo adequado". Mas perda de pontos? Só se a televisão tivesse distorcido a realidade mais do que alguns relatórios disciplinares. Aliás, a própria noção de "tentativa de coação" aplicada ao futebol português tem um sabor literário. É como dizer que o barbeiro de Farioli tentou influenciar a tática com o penteado. Ou que o apanha-bolas ameaçou o árbitro com uma bola medicinal.
A realidade é esta: a figura jurídica da coação pressupõe uma ligação causal entre o ato e a decisão do árbitro. E, salvo prova de que Fábio Veríssimo tenha voltado do intervalo decidido a compensar o protagonista do ecrã, o caso dificilmente passará de curiosidade regulamentar.
O futebol português adora grandes causas - mesmo quando o caso é pequeno. Transforma um televisor em metáfora e uma ficha elétrica em ato subversivo. No fundo, somos um país que vê mais emoção num botão "ON/OFF" do que num fora-de-jogo milimétrico. E, quem sabe, este episódio sirva para algo útil: inspirar uma nova categoria jurídica, entre a coação e a comédia. Podíamos chamá-la "coação estética". Um conceito que abrange tudo o que é feio, exagerado ou simplesmente inútil - como alguns comunicados oficiais. Se isto é coação, então somos todos culpados: quando vemos futebol na televisão, passamos a vida a gritar-lhe, e ela, impassível, continua sem se sentir pressionada.

