PLANETA DO FUTEBOL - Um artigo de opinião de Luís Freitas Lobo.
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1 Um vendedor de flores, um barbeiro, uma mulher pequena, um homem gordo, um jogador de basquetebol, um cantor de fado.
O que têm (podem ter) estas pessoas em comum? Nada. Ou tudo. Gosto de olhar para o mundo como uma babilónia aparentemente incompatível de personagens.
Toda estas que referi podiam perfeitamente cruzar-se connosco no mesmo dia e não íamos ficar a pensar nisso. Gosto de olhar para o futebol dentro do relvado da mesma maneira. Jogam todos. Altos, baixos, magros, mais gorditos, rápidos, lentos e alguns que são uma mistura de tudo. Indecifráveis. Impossíveis de definir numa palavra mas, talvez, possíveis de ser sublimados na letra duma música.: "Eras o rapaz do brinco, eras o herói da tarde, driblador cheio de afinco, médio seguro ou trinco (...) eras o ponta de lança da infância sem ternura, o campeão que foi esperança, e essa eterna criança, sempre às portas da loucura, foste a sombra do que eras"
Estas são algumas frases escritas por José Jorge Letria para a música de Vitorino "Rapaz do Brinco", que acaba com um fantástico "e se a grandeza é tão rara, que viva o Vítor Baptista!".
2 O golo célebre marcado ao Sporting, remate fulminante ao ângulo, o tal que nos festejos fez ficar tantos jogadores encarnados de joelhos à procura de um brinco que nesse momento ele perdeu, foi o último que ele marcou pelo Benfica. Estávamos na época 77/78.
Recordo pouco de o ver nessa altura. Era ainda muito miúdo, mas já me lembro bem de o ver em 1980 a jogar no Boavista. Fez grandes jogos nessa única época no Bessa, com 31 anos.
Lembro uma vez de, por longos minutos, o seguir só a ele durante um jogo com os meus olhos de miúdo então de 12 (quase 13) anos. E, sabem, sinceramente, a imagem que me ficou presa na cabeça desse momento? Foi ver como, após ter arrancado sem ninguém lhe tirar a bola, de repente, porque a jogada não dava em nada e o jogo seguia para o outro lado do campo, ele ficou alheado de tudo, sentado na relva, durante muito tempo, a olhar para o vazio.
Pode parecer estranho, mas foi mesmo assim. Como se existisse um túnel secreto onde se tivesse metido. O mesmo, talvez, que o meteu no mundo da droga e marginalidade até se perder nele. Para nunca mais voltar. "Foste esse brinco perdido, grande tarde de glória, e podias ter vencido, mesmo vergado e rendido pelas traições da memória."
Nas ultimas entrevistas que deu, num programa de televisão pela noite dentro, onde foi levado por jornalistas amigos, já quase não se percebia o que dizia. Parecia, pela forma como "olhava" para as perguntas que lhe faziam, que já nem "estava ali" e não as entendia. Era como já estivesse "noutro mundo". Como sempre esteve, aliás. Perturbador e paradoxal. Como a serenidade do caos.
3 É difícil dizer que o Vítor Baptista, vida, tipo de futebol, glória e tragédia, foi produto tipo de uma época mas não custa rever em todo esse seu percurso de luzes e trevas muito dos anos 70 mais profundos, quando tantas amarras e rédeas se cortavam. O "maior", como ele se definia com a arrogância mais inocente e rebelde, das grandes noites europeias no Benfica, nos problemas com Jimmy Hagan, duro treinador inglês, como procurando o brinco na relva, até à prisão ou o trabalho como coveiro num cemitério, tinha todas estas imagens e todas eram (foram) verdadeiras. Morreu pouco depois de fazer 50 anos, corroído pela vida. Se fosse vivo, faria este ano 72.
O futebol português tem personagens incríveis que revelam o mais íntimo da sua existência secular, muito distante do maravilhoso "mundo pop-star" Ronaldo do presente. Não custa perceber qual deles é o historicamente mais real num olhar global por todos as épocas.
Já não faz sentido fumar Gitanes e beber vinho tinto ao mesmo tempo. Os tempos são outros. E os craques estão diferentes dos do tempos em que eram "o brinco joia rara, desse tempo de conquista, em que a loucura sai tão cara e a grandeza é tão rara."