Décadas de história, tudo o que faz um clube (adeptos, velhos diretores, sentimento) ficou, subitamente, fácil e encaixotável. O Aves é só um exemplo
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1 - Vejo no António Freitas a cara de um "homem bom" do futebol. E tem dinheiro suficiente para ser, na prática, um "homem bom". Até como quando, vendo que não sabia do telemóvel em plena reunião na Liga, foi procurá-lo ao carro e ele estava em cima do tejadilho do seu Jaguar. Provava-se, igualmente, como confessou aliviado na altura, a teoria da sua mulher sobre ele também ser um "homem de sorte".
Vi aquele primeiro minuto do Aves-Benfica como uma "carta fora do baralho". Talvez o minuto de todo o campeonato mais fiel ao estado do futebol português fora da realidade da elite macrocéfala
Com esse telemóvel conseguiria desbloquear mais um problema e o seu Desportivo das Aves, ou os 10% que restam dele em forma de futebol profissional na posse do clube, conseguiu ter a equipa para jogar contra o Benfica na jornada seguinte (e agora, também, na última, com o Portimonense, pagando ele, presidente de outro tempo, o hotel para os jogadores ficarem no Algarve antes do jogo). É este o "Plano B" do futebol português mais profundo e real. Quase como se a solução para o nosso planeta fosse colonizar Marte.
A maioria das SAD não foram vendidas a investidores. Foi a comerciantes. É muito diferente. A partir do momento em que acabou a obrigação de ter pelo menos "50%+1" do seu capital, perdeu-se a essência emocional-desportiva que faz um clube de futebol. Ficou automaticamente capturado por interesses economicistas agiotas.
2 - Vi aquele primeiro minuto do Aves-Benfica como uma "carta fora do baralho". Talvez o minuto de todo o campeonato mais fiel ao estado do futebol português fora da realidade da elite macrocéfala. Olhei já sem reação para tudo aquilo, enquanto os jogadores do Benfica, tocados pelo deserto existencial em que estavam parados (na outra metade do campo) os jogadores do Aves, trocavam a bola entre si. A bola, essa, vagueava então sozinha, por dentro e por fora, desirmanada, como todo o futebol.
3 - O futebol português (personificado no drama do Aves) busca um coexistir de realidades estranhas e totalmente inconciliáveis. Há muitos casos semelhantes. Estes clubes foram levados, no novo milénio, para um local onde não queriam ir mas que sentiam ser o único possível para continuar a existir com o tamanho admissível aos melhores eventos. Muitas décadas de história, tudo o que faz um clube (adeptos, velhos diretores, sentimento) ficou, subitamente, fácil e encaixotável.
Dizem que o nosso mercado não permite mais, mas não é no tamanho que este Portugal ou alguns clubes são pequenos. É nas mentes de quem os capturou (e de quem os deixou capturar). Tudo implode em câmara lenta. O Desportivo das Aves é (apenas) um exemplo atual e vivo da contaminação global do espírito.