É verdade que, em tese, um jogador pode escrever que o treinador é um caos táctico, que o balneário cheira a meias de 2008 ou que a comida da cantina tem sabor a calcário. Mas não deve. Porque isso atropela o dever de lealdade e pode configurar infração disciplinar — com menos graça do que a publicação sugeria.
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O jogador entra em campo às 20h45, mas já publicou três stories. Pode estar lesionado há semanas, mas nunca falha uma selfie no ginásio privado, uma pose no rooftop ou um reels patrocinado por proteína em pó. A camisola do clube está no cacifo, mas o equipamento do Instagram é dele: com filtro e um código promocional na legenda.
E isto levanta a questão: até que ponto pode o clube limitar o uso das redes sociais pelo atleta?
O jogador é profissional, mas também é pessoa. E, como qualquer pessoa, tem direitos de personalidade que incluem o direito à imagem, à palavra, à reserva da vida privada e à livre expressão. Postar no Instagram, opinar no X, fazer dancinhas no TikTok ou aparecer no LinkedIn com fato completo verde — tudo isso integra a sua esfera pessoal. O contrato de trabalho não apaga o direito a ser humano depois do treino. O que não quer dizer que seja um direito absoluto.
O contrato (mesmo o desportivo) impõe deveres: obediência a ordens lícitas, lealdade, zelo e respeito pela imagem da entidade empregadora.
Isto significa que o clube pode dar orientações razoáveis sobre conduta pública: pedir contenção em declarações polémicas, evitar comentários que desestabilizem o balneário, ou até recomendar silêncio digital depois de uma derrota humilhante de 4-0 em casa.
O que não pode é invadir a vida privada do jogador como se fosse o VAR moral da conta pessoal. O atleta não está disponível 24/7 para validação institucional. Há limites. A liberdade de expressão não fica no balneário. É aqui que o Direito faz pressing alto.
É verdade que, em tese, um jogador pode escrever que o treinador é um caos táctico, que o balneário cheira a meias de 2008 ou que a comida da cantina tem sabor a calcário. Mas não deve. Porque isso atropela o dever de lealdade e pode configurar infração disciplinar — com menos graça do que a publicação sugeria.
Mesmo nas redes, a boa-fé continua a ser a cláusula mãe. A liberdade existe, mas não é um passe livre para posts tóxicos, indiretas rancorosas ou emojis maldosos em dia de convocatória.
Podem, assim, existir cláusulas específicas sobre o uso de redes sociais. Desde limites à publicação de imagens com patrocínios concorrentes, até proibições de comentários políticos, religiosos ou mesmo… românticos.
São cláusulas válidas. Não é censura. É equilíbrio. Proporcionalidade. E, no fundo, uma tentativa de evitar que o Instagram se transforme num campo minado de conflitos laborais.
A ironia é que, muitas vezes, o clube nem quer que o jogador se cale — quer que fale. Quer que promova o novo patrocinador, a marca de isotónicos ou o cachecol da loja oficial. E aqui entramos no domínio dos direitos de imagem, muitas vezes contratualizados à parte — tema para outra crónica.
Fora isso, o Instagram é território pessoal. Nem sempre neutro, nem sempre sábio — mas juridicamente protegido.
O futebol já não se joga só com bola. Joga-se com filtros, legendas e algoritmos. E o Direito tem de saber acompanhar — com fair-play, mas sem likes cegos.