PLANETA DO FUTEBOL - Um artigo de opinião de Luís Freitas Lobo.
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1 O filme, feito em 1982, projetava o que seria a vida em... 2019 numa imaginária e decadente Los Angeles, desfeita pela poluição e abandonada pelos seus nativos. Uma visão catastrófica da natureza humana melancólica, deprimente e já só de existência subterrânea. Todas as culturas convivem nesse espaço (mexicanos, chineses, árabes, todos). É um filme profético que, perturbantemente belo e sombrio, questiona a ética e a busca do sentido para a vida.
Onde vivemos hoje? Passamos de 2019 para 2020. Não estamos num mundo novo. Não se iludam. Estamos nos escombros saídos do velho. Como o futebol, com profusão de etnias, credos e costumes.
Os jogadores voltaram a pisar a relva sem cheirar o balneário. Nem antes, nem depois. A academia do Sporting foi a primeira a abrir um frincha da porta para deixar passar alguns. Cada um traz o equipamento de casa. O que quiserem. E depois, num relvado inteiro dividido em dois, cada um tem meio-campo para treinar.
2 No filme de culto que citei, tenta-se evitar o colapso dos humanos criando outros artificiais, os chamados "replicantes". Ninguém os consegue, depois, distinguir dos verdadeiros. E alguns fogem. Quando, na nossa realidade, esta espécie de "jogadores blade-runner" se aproximam, têm de... recuar. As regras sanitárias impõem uma distância social-futebolística de 10 metros medidos por uma imaginária fita métrica na cabeça de cada um. De repente, chega-lhes uma bola e é como "se nascessem outra vez". É um pedaço de futebol. Acuña mostra a sua garra a correr sozinho. Veste os calções da seleção da Argentina. Vê-se bem o emblema. Rafael Camacho está por perto, à distância suficiente para lhe fazer um passe certo sem... risco, mas não pode ser. No fim, metem-se no carro e voltam, sozinhos, para casa. Fim de história. Ou, se calhar, início de uma história nunca antes contada.
3 Não creio que esta história acabe com "e viveram felizes para sempre". Em geral, as histórias acabam assim porque quem as inventa nem quer saber de mais nada. É o melhor a fazer, de facto. Porque, no futuro está o mistério, o "lugar estranho". Não sabemos quem irá lá morar. Por isso, todo este "regresso ao futuro" do futebol, jogador a jogador, é como um "VAR blade-runner". Ninguém toca. Por nove metros está "fora-de-jogo".
A primeira frase de "Blade Runner" passa-me pela cabeça: "Vi coisas que vocês, humanos, nem acreditariam". Eu diria, seguindo Ridley Scott, que nem por um dia ousariam sonhar. Estou a ficar estranhamente consciente que posso viver sem muita interação social. Também é perturbador. Poderá, neste tempo de silêncio, o futebol reencontrar-se outra vez? Não ouso sonhar.
Há outros mais gordos
Vamos, passo a passo e, em breve, passe a passe. As coisas voltarão à "normalidade anormal" de antigamente. Este vírus já existe há 300 milhões de anos. É filho de outros que já por aqui andaram (ou ainda andam). Já tivemos piores. Mais gordos. E sobrevivemos. Nós e o futebol. Este mundo já era demasiado velho quando eu era novo. Eu é que não sabia (e era feliz assim). Mas, preciso do futebol. Preciso dele para respirar, para viver, para sobreviver.
As regras criadas pelos alemães para voltar tentam evitar o inevitável. Proíbem saudações e fotos em conjunto, mas como depois impedir o contacto físico permanente que é o jogo? Em rigor, o regresso aos treinos ainda não aconteceu. O que vimos são como reativações físicas, não de jogo, porque para isso teria de ser exercício coletivo (o treinador, aliás, nem está presente, só preparador-físico e departamento médico).
A única forma de vencer este momento é desafiando-o. Não me parece um vírus muito inteligente taticamente. Ataca sobretudo os mais fracos e velhos. Como a equipa grande que massacra a pequena quando já está a ganhar por 5-0.