FOLHA SECA - Opinião de Carlos Tê
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No começo desta época, Jurgen Klopp criticou os rivais de Manchester pelos gastos sumptuários em tempo de vacas magras. Pepe Guardiola foi lampeiro na reposta e convidou o Liverpool a queixar-se nos tribunais.
Com a aterragem dos estilhaços da Super Liga no pátio do Tribunal de Justiça da União Europeia, a ironia do catalão profetizou, sem querer, a chegada dum tempo impensável há meia dúzia de anos: a real descida do futebol aos tribunais, apesar das suas instâncias próprias e da ameaça de castigos a clubes - extensivos às federações - que recorram a foros civis para dirimir contendas.
O presidente do Real Madrid lançou às canelas da UEFA o Tribunal de Comércio de Madrid, que intimou o órgão máximo do futebol europeu a anular todas as sanções aos fundadores da Super Liga, bem como a coibir-se de tomar medidas contra essa prova defunta mas não enterrada. Sustenta o juiz que a UEFA impede a livre concorrência e o aparecimento de produtos alternativos aos que a UEFA oferece, atentando contra a inovação e reduzindo o potencial de mercado - e as escolhas do consumidor, outrora conhecido por Adepto.
O jargão jurídico é o mesmo das empresas conflituantes, como se a Super Liga seja um sabão lançado por uma Unilever emergente disputando o monopólio da original - a UEFA. Real Madrid, Barcelona e Juventus esperam que o Tribunal de Justiça da União lhes dê razão, mas também exigem que seja retirado à UEFA - e à FIFA por arrasto - o exclusivo da organização das competições, por ferir a liberdade duma indústria que já não é mais um desporto, e, como tal, deve estar sujeita às regras do mercado geral, podendo os clubes fundar novos produtos e governá-las à sua vontade.
Aguarda-se o resultado. No primeiro round, a UEFA ignorou a intimação de Madrid, mas indultou os implicados em sinal de recuo. O presidente da UEFA, que Florentino Pérez acusa de estar agarrado a privilégios, diz que espera ganhar o processo, mas di-lo com cautela, pois pode vir aí um caso Bosman, agora a favor do patronato, em que os milionários podem criar as Ligas que quiserem, nos termos que entenderem.
UEFA e FIFA enfrentam o poder das crias que ajudaram a cevar num ambiente de suspeita e corrupção, por isso têm pouca força moral para limitarem o acesso à copa da árvore das patacas ainda por abanar, e os homens feudais do futebol, liderados pelo empreiteiro Pérez, passaram das palavras à acção.
Entretanto, o reino saudita comprou o Newcastle e fez dele o clube inglês mais abonado do ramalhete árabe, sob a contestação dos outros ricos da Premier Legue, que se queixarão nos tribunais quando os já inflacionados salários derem mais um salto.
Isto seria uma telenovela interessante de seguir do sofá, se não afectasse o futebol. Porque o que aí vem é o capitalismo desregulado em movimento, a agricultura intensiva do futebol. Lembra-me uma velha cantiga de José Afonso, Coro dos Tribunais: soa o clarim soa o tambor/ o morto já não sente a dor/ quando o deserto nada tem a dar/ vêm as águias almoçar.