FOLHA SECA - Opinião de Carlos Tê
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O cartão de adepto é um tackle preventivo aos surtos de racismo que eclodem volta e meia nos estádios - ainda que não nos achaque um hooliganismo à inglesa e a violência física se tenha resumido ao exterior e a desoras dos jogos.
A ideia é bem intencionada e ainda está em processo de afinação. Por agora, limita-se a dificultar a compra de bilhetes a adeptos visitantes que não pertençam a grupos nem carreguem bombos e bandeiras com X tamanho, algo que não os obrigaria a requerer o cartão. Daí que alguns, para assistirem ao Sporting-FCP, deitaram mão a esquemas e candongas, uma área em que o tuga dá cartas.
É obrigatório para claques e para o tal adepto com bandeiras com um metro de alto por um de largo. Só isso basta o atirar para o sector da claque, mesmo não se revendo no seu espírito miliciano. Aí são permitidos megafones, instrumentos de sopro e de percussão mecânica, desde que não amplificados por fontes externas de energia, que são de uso exclusivo do DJ da casa - só ele pode fazer vasqueiro no recinto com o estendal electrónico à sua disposição, como no momento em que há golo do visitado e o Speaker grita o nome do marcador com entusiasmo de feirante ao som dum techno-pimba.
Dizem que o cartão é um mal necessário e que quem não deve não teme, apesar do seu princípio ser temível, mesmo com respaldo na Constituição. Eu temo que o objectivo principal é mostrar trabalho e tranquilizar a consciência das autoridades. Daí não se perceber o mecanismo. Funciona por pontos, como na carta de condução? O mau adepto é barrado no torniquete e o bom tem direito a bónus? E quanto a ofensas? Insultar o árbitro vale menos do que o insulto racista? O Very Light é mais grave? E como se vigia a bancada? Por uma torre panóptica de vídeo?
Cuscar é humano e a tentação cusca do Estado será sempre grande. Na China, há uma câmara vídeo-vigilante para oito cidadãos que sacrificam, sem opção, a sua privacidade no altar do bom comportamento. Vigora um sistema de créditos que divide as pessoas em cumpridoras e incumpridoras. O saldo é seguido numa aplicação e condiciona direitos e serviços, como viajar de avião ou de TGV. É disto que falavam há 60 anos George Orwell e Aldous Huxley.
O futebol não podia escapar a este admirável novo mundo precipitado pelo 11 de Setembro de 2001, como mostrou Edward Snowden. A pandemia deu o empurrão que faltava para o meter no laboratório de vigilância social, como se não bastassem as jaulas volantes para adeptos.
Se há adeptos que adoram o cheiro a enxofre do confronto - por ser o que de mais excitante acontece nas suas vidas - a maioria só quer ver futebol. Talvez o cartão ajude a filtrar os primeiros, mas os Ultras arranjarão sempre modo de o iludir, tal como os grandes Ultras, que se movem com um teor de impunidade refinado. São peritos em comissionismos e offshores e não usam bombos nem megafones. Quando se dá por eles, já um bom escritório de advogados entrou em campo. Os outros serão apenas ruidosos - e visíveis no saldo do cartão.