PASSE DE LETRA - Um artigo de opinião de Miguel Pedro.
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O jogo entre Braga e Fiorentina, será recordado, no futuro, por adeptos de futebol, mas também por cientistas e filósofos cognitivos: nele, o árbitro revogou uma decisão tomada por uma "inteligência artificial"(IA), tecnologia composta por sensores, sistema operativo, software, emissores de sinal, etc., chamada "tecnologia da linha de golo"(TLG).
A questão é simples: sendo o futebol um jogo humano, com regras e tomadas de decisão humanas (jogadores, treinadores e árbitros), qual o papel da "IA" no seu seio?
Faz-me lembrar o início do filme Blade Runner, baseado num livro de Philip K. Dick (que muito pensou sobre os limites do artificial e do humano): o caçador de autómatos a fazer o teste Voight-Kampf, destinado a perceber se era um humano ou um ser artificial. Este teste, inspirado na famosa máquina de Turing, tinha por objetivo confirmar a existência da inteligência artificial através da sua capacidade de simular o ser humano. A empatia e a capacidade de moldar o significado pelo contexto eram, no filme, características próprias do humano e impossíveis de simular pelos autómatos. Realizado no auge da designada IA Simbólica (que nos deu os primeiros computadores pessoais e os sistemas operativos famosos), o argumento do filme desconhecia o estado atual da IA, baseada em modelos conexionistas, com as redes neurais a tentar imitar os neurónios humanos, o deep learning ou ou NLP (processamento de linguagem natural) e que permitem um estado bem interessante da IA, com assistentes virtuais, jogos de computador que aprendem com o jogador ou diagnósticos médicos, entre milhares de aplicações. Uma delas é a TLG, cuja autoridade foi posta em causa pelo árbitro Benoit Bastien, ao preferir acreditar nos seus olhos do que no seu relógio, cujo visor exibia "GOAL"
O árbitro limitou-se a... ser árbitro, a fazer um julgamento. E usou, para tal, os sentidos e o contexto. Não acreditou no que a IA lhe transmitia (erro nos sensores? Deficiente programação das medidas da bola?). Ele e o VAR perceberam que o que a IA lhe comunicava não correspondia ao contexto, ao que eles viam com os seus olhos. Ninguém poderá pôr em causa o valor da tecnologia como auxiliar dos árbitros. Mas a tecnologia - no futebol como em tudo - é um meio, uma ferramenta e não um fim em si mesma. No futuro, quando e se isso acontecer, se a IA for um fim por si só, atingiremos a Singularidade, o momento em que o ser humano deixará de o ser. E o futebol deixará de ser um assunto humano.