"No tempo de Mourinho, os adeptos tinham uma teoria: está tudo sob controlo, até a tremedeira"
FOLHA SECA - O cronista Carlos Tê escreve, em O JOGO, recorda um modelo peculiar de os adeptos encararem as fases menos positivas do FC Porto.
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No tempo de Mourinho, quando o Porto atravessava uma fase mais vacilante, os adeptos tinham uma teoria: "Está tudo sob controlo, tudo previsto, até a tremedeira." Certo é que o carácter indómito daquela equipa convertia o mais céptico - e ai de quem pusesse em dúvida a sapiência do mestre.
O intrigante da questão era a hipótese de ser possível planificar os altos e os baixos da época - sobretudo os baixos - como quem planifica uma agitada excursão de finalistas. Era algo que remetia para os domínios da lenda e rasgava um sorriso irónico nos mais racionais. Mas, quando vinha o raro período de quebra, a teoria lá soprava, tranquilizadora, alimentada por uma estranha palavra-chave - dentro. Dentro? Sim, há sempre um dentro na relação dos adeptos com o clube.
De repente, após a saída de Brahimi, o Porto arrancou para uma ponta final quase luxuosa.
Ontem, como hoje, uns estão mais dentro do que outros, ou porque têm informações dum roupeiro, dum sapateiro, dum tratador da relva, ou porque frequentam o café onde vai fulano, que priva com beltrano que, por sua vez, nesse tempo, podia conhecer o barbeiro de Antero Henrique, ou o cunhado do mecânico que fazia a revisão do autocarro.
Enquanto isso, de fora, efabulava-se o refinamento da máquina por dentro, a ligação entre os gabinetes, as directrizes do mestre, métodos, pesagens, cálculos, algoritmos, a prancheta com o gráfico da planificação de Junho a Maio, o rompante inicial marcando a posição na grelha de partida, a queda estratégica a seguir ao Natal, e, por fim, o pico, o portentoso e orquestrado pico culminando na resolução atempada do título, nas finais caseiras e internacionais, no futebol em todo o seu esplendor científico.
Mito ou não, certo é que a História deu razão à teoria. Lembrei-me disto ao ver a ausência de mecha deste Porto em Roma, a dificuldade de Felipe em articular um passe, o desencontro de Soares com a bola, a fadiga ameaçando desligar cada músculo, como se não houvesse ninguém mais fresco no plantel, como se a titularidade recaísse estatutariamente sobre aqueles jogadores, sempre os mesmos, apagando-se aos poucos.
De repente, após a saída de Brahimi, o Porto arrancou para uma ponta final quase luxuosa. A energia e a revolta dos cabos vindos do banco catapultaram a equipa para a frente e para a esperança na eliminatória. Terá sido a lesão do magrebino um "infortúnio feliz"? É notório que ele se arrasta há algum tempo. Por cada lance genial que engata, há três tabelas que não devolve, três desmarcações que não respeita, três becos sem saída onde se encafua.
O adepto reconforta-se com a boa exibição em Guimarães - apesar do empate - e acredita que está tudo sob controlo, até Alex Telles, no modo esforçado como defende e marca alguns cantos à esquerda com a bola curvando a linha de cabeceira por fora. Talvez esteja previsto no plano da época defender com tenacidade a liderança no Inverno e arrasar na Primavera. Mas há dias em que o adepto mais tarimbado nas incógnitas da bola quase desconfia da ciência. Principalmente ao ver a erupção de força e juventude que desponta na Luz.