O cronista António Barroso escreve hoje sobre o processo de extradição de Rui Pinto, alegado hacker dos emails do Benfica e assumido denunciante do Football Leaks.
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A não ser que o recurso de Rui Pinto vingue no tribunal de apelo de Budapeste, o alegado hacker dos emails do Benfica e assumido denunciante do Football Leaks vai ser julgado em Portugal. E, tendo em conta as diligências das autoridades portuguesas, poderá mesmo vir a ser julgado no âmbito do processo (que rola na Justiça comum e desportiva) mais mediático, precisamente aquele em que é acusado pelo atual primeiro classificado da I Liga.
Mas fica uma questão no ar. E essa questão pouco tem a ver com emblemas desportivos e as suas guerras. Por que razão é um denunciante colaborador das autoridades judiciais em França e na Suíça, por exemplo, e não o é em Portugal?
Se alguém desconfia de alguém, só as autoridades portuguesas têm competência para investigar e validar as intimidades suspeitas.
A diferença está no conceito de delação premiada, que não tem contexto praticamente nenhum na legislação portuguesa. A forma como alegadas provas de corrupção chegam às mãos do Ministério Público português ou à Polícia Judiciária faz depender qualquer investigação às ações explícitas em qualquer género de documento, pois se o mesmo for conseguido de forma ilícita não pode ser considerado prova em tribunal, ou até mesmo em fase de instrução criminal.
Qualquer material que revele mais do que indícios de prováveis ilícitos só tem valor para o juízo criminal se for recolhido de forma legal. O que, à luz da nossa legislação, deixa essa prática para as autoridades judiciais em conformidade com procedimentos legais e pouco mais.
É verdade que Portugal tem um problema com a delação. Foram 48 anos de regime ditatorial, no século passado, que premiaram esse género de delação, de denúncia sem prova, de dedo a apontar crimes inexistentes apenas por inveja ou política. Portanto, se alguém desconfia de alguém, só as autoridades portuguesas têm competência para investigar e validar as intimidades suspeitas.
À luz da nossa legislação, não competia a Rui Pinto investigar a privacidade de ninguém, nem sequer a intimidade comunicacional do Benfica, do Sporting, do FC Porto ou fosse de quem fosse. Nem da Doyen, nem dos agentes e empresários desportivos que gerem ou favorecem fundos financeiros que o Football Leaks expôs e que vários tribunais de países europeus têm vindo a condenar. E que a justiça desportiva desses países tem vindo a punir. E que até a UEFA e a FIFA têm considerado, afastando intocáveis como Platini e Blatter.
Ainda em novembro passado, a plataforma de jornalistas que analisa os documentos "libertados" noticiou que Infantino, atual presidente da FIFA, encobriu o doping financeiro de Manchester City e do Paris-Saint Germain. O que as autoridades desses países estão a investigar.
"O problema está, primeiro, nas intenções de quem faz as leis. Depois, na capacidade das autoridades em implementá-las e vigiar o seu cumprimento.
Mas, e porque isto é uma coluna de opinião, ainda me obrigo a render ao princípio da não-delação em Portugal. Compete às autoridades judiciais a investigação das suspeitas e a confirmação de que as mesmas são indiciantes ou para arquivar. Não compete a Rui Pinto.
O clima de suspeição no futebol português em nada beneficia com atos género Robin dos Bosques. Compete, primeiro, à justiça comum e, depois, à justiça desportiva, a investigação, tramitação e acusação da batota ou a definição da inocência.
Mas o futebol português é apenas um caso... português. E no que toca à Justiça em Portugal, estamos conversados. Não por causa de epifenómenos como um juíz que ainda dita sentenças baseados nos seus preconceitos em vez de o fazer conforme as leis e a Constituição, como o já famoso Neto de Moura, que alivia penas de criminosos baseado no comportamento sexual das mulheres.
Não, o problema está, primeiro, nas intenções de quem faz as leis. Depois, na capacidade das autoridades em implementá-las e vigiar o seu cumprimento. E, por fim, na capacidade que cada cidadão tem em escrutinar o comportamento dos políticos fazedores de leis e das autoridades que as devem fazer cumprir.
Quando tudo o que disse acima não acontece, não é de admirar que apareçam cidadãos armados em robins dos bosques. E nisso, todos nós temos culpa. Porque votamos e porque não queremos saber como se gerem os nossos impostos, algo que pago para um bem comum. Se quiséssemos saber, preferíamos dar ferramentas à Justiça em vez de, com esses mesmos impostos, estarmos a pagar erros continuados de banqueiros que ofereceram dinheiro aos amigos.