Mourinho: o regresso do encantador de jogadores que não ganharam nada
FOLHA SECA - A crónica quinzenal de Carlos Tê em O JOGO
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Mourinho está de regresso. A sua entrada, ontem, no Estádio Olímpico de Londres lembrou um divo da ópera afastado dos palcos há demasiado tempo. As câmaras televisivas sorveram-no gulosamente, demonstrando que o futebol não podia viver sem um dos seus maiores protagonistas dos últimos anos. Que outro campeonato para voltar a acolhê-lo que não o inglês? É notável um compatriota nosso aguentar-se tanto tempo na primeira linha duma actividade tão desgastante e tão competitiva como esta.
O desplante de se marimbar para os ingleses e no fim obter resultados fez dele um ser venerado
A nova etapa parece ser um passo atrás por se tratar do Tottenham Hotspur, um clube rico mas com poucos títulos. Mas talvez seja necessário dar um passo atrás para dar dois em frente, um último e grandioso passo, a projecção dum clube sem pergaminhos. Haverá maior desafio do que esse? Deve ser isto que move Mourinho, além da prova de vida e da adrenalina viciante da alta-roda. Porque dinheiro, apesar dos 17 milhões de euros por época, já ele deve ter em barda.
A saída do United empalideceu a estrela que galvanizava os clubes por onde passava. O último ano mostrou um Mourinho desconhecido, sem vara de condão, vergado ao fracasso da reabilitação dum colosso. Gastou fortunas e ganhou uma Liga Europa e uma Taça da Liga - ainda assim, mais do que ganhará o seu sucessor. O jogo do United era cauto e enfadonho. A certa altura, dava a sensação de já só tentar gerir os danos infligidos à sua lenda.
Estava longe do ferrabrás que entrara por Stamford Bridge de pé em riste, levando tudo à frente e impondo até um impensável modelo viril de elegância, com o famoso sobretudo da Boss. Se há lugar adverso para estrangeiros, é a Inglaterra, que se divertiu a talhar alegremente o seu caixão mediático. Mas a autoconfiança de Mourinho era à prova de bala. O desplante de se marimbar para os ingleses e no fim obter resultados fez dele um ser venerado, sobretudo por ganhar - a vitória é a mãe de todas as inconsciências e bazófias.
Década e meia depois, Mourinho diluiu o ego no clube, na equipa, no todo. Passou a ser mais um. Não sei se a Inglaterra aceita que seja só mais um. O mundo está cheio de treinadores que são só mais um. Será difícil descolar da velha pele. O risco é grande e só o tempo dirá se ele controla a sua nova narrativa.
Podia ter calçado as pantufas, mas o bichinho da ribalta foi mais forte. O facto de o Tottenham ter um palmarés pouco relevante pode até ser a chave do sucesso. Mourinho não dorme na forma e sabe perfeitamente que tem à sua disposição alguns dos melhores jogadores ingleses da actualidade, gente guerreira e codiciosa, que não ganhou nada, a não ser dinheiro, e ele trabalha melhor com quem não conhece a glória.
Seja como for, é uma alegria vê-lo de volta. Tal como Ronaldo, Mourinho é um português desmedido que não pede licença ao mundo para existir. É um aventureiro contemporâneo, descendente de navegadores que tomavam o pulso às estrelas com o sextante. Não abdica de surfar a vaga no olho do furacão.
Quanto mais não fosse, seria sempre especial por isso.