FOLHA SECA - Um artigo de opinião de Carlos Tê.
Corpo do artigo
Roberto Martínez é um espanhol enriquecido pela cultura positiva do futebol britânico. Como ninguém, sabe que a equipa com coragem para assumir o jogo tem mais possibilidades de o vencer.
Mas não se espere que o ciclo agora iniciado na Selecção A inclua um corte radical com o calculismo do passado.
Talvez um olhar de fora possa contribuir para potenciar o auspicioso viveiro de jogadores que amadureceu por essa Europa, numa singular relação entre baixa demografia e fornadas de talento que o país produz. Se Portugal tivesse números destes na arte e na ciência seria um motivo de estudo e de admiração. Assim, é apenas um caso louvável de exportação de mão obra qualificada.
O balanço regista mil milhões de euros na última década, um valor que a Selecção não traduziu em resultados. A fórmula que coloca o individual virtuoso no centro do colectivo eficaz está por descobrir. Scolari chegou perto em 2004, com uma equipa cheia de nervo e fantasia, que paralisou na hora H. A final de 2016, mais do que um jogo, foi um épico digno da História Trágico-Marítima, mas valeu o primeiro troféu, suado e sofrido. Quando parecia termos estabilizado num patamar superior com a vitória na Liga das Nações, prenunciando idas frequentes a meias-finais e finais, o Euro"2020 trouxe de volta o fantasma da quebra e da falta de rasgo.
No Catar, com condições reunidas para um brilharete, o golpe veio de quem menos se esperava: um capitão em guerra com o seu próprio declínio e com um empresário que não lhe garantiu um clube de Champions. O tsunami mediático gerado minou a autoridade do treinador e a solidez do grupo.
Agora, mais do que expectativa, põe-se a curiosidade de ver como Martínez sacode a poeira desse passado recente. Pelos primeiros sinais, diria que há um elefante na sala. Ronaldo mantém um estatuto que o autoriza a vetar órgãos de Imprensa e perguntas inconvenientes, ao mesmo tempo que elogia o novo ar fresco, atribuindo a Fernando Santos, por omissão, o antigo ar irrespirável - em contraste com as palavras de Cancelo depois do Liechtenstein, enfatizando a gratidão a Fernando Santos, o que pode sugerir alguma frieza pós Catar na constelação central.
Isto devolve-nos à incógnita Martínez: nunca lidou com uma estrela do quilate de Ronaldo, ainda por cima num ocaso quezilento. Não se sabe como reagirá este seleccionador a um gesto feio durante uma substituição, que já estaria negociada na quinta-feira. Mas é um mau augúrio que a FPF aceite o poder de Ronaldo marginalizar este ou aquele jornal, por muita antipatia que suscite. Esperemos que, ao contrário de Old Trafford, a cozinha do centro de estágio não lhe desagrade, e que a família não mande recados se as coisas correrem mal.
Torçamos para que Martínez encontre a fórmula e tire partido da classe disponível. Por agora, sem jogos que permitam aferir o novo rumo ou o novo sistema, fica a pose prudente de quem apalpa o terreno. Mas terá vida difícil se Gonçalo Ramos e João Mário ficarem no banco. O zunzum nacional alastrará.