Um tribunal de Buenos Aires adiou a cremação de Maradona para tirarem amostras do seu ADN.
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Um tribunal de Buenos Aires adiou a cremação de Maradona para tirarem amostras do seu ADN. Seis processos de apuramento de paternidade aguardam resultado, tal como os cinco filhos legítimos aguardam para saber quantos são
Entretanto, áudios de conversas entre os seus cuidadores nos últimos dias revelam um fim triste para o pássaro que voou no Argentina-Inglaterra de 1986, com dois golos que marcam os anais do futebol. Num, finta meia equipa inglesa e marca; no outro, intruja o futebol e marca com a ajuda da mão, endossando o acto para a mão de Deus. Esta frase fez-se o bordão vingador da derrota militar da Argentina nas ilhas Malvinas, em 1982, às mãos da mesma Inglaterra, e que precipitou o fim duma ditadura que deu sumiço a trinta mil pessoas. A cicatriz da guerra, essa, foi mitigada pela vitória no Mundial, e Maradona pagou a tarifa do mito que, para ser pleno, tem que marinar na auto- destruição.
A cultura pop é fértil nestas histórias, mas o que acontece a um mito vivo é feio de se ver. A pessoa perde o norte, torna-se volúvel com a bajulação, fica encarcerada na sua personagem. Vem o álcool, a droga, tudo o que suture por instantes o lanho da fama e da glória. O pássaro dourado tem tudo, menos a sua humanidade. Por muito que evoluamos, teremos sempre ídolos em altares privados e colectivos para redimir a nossa mediania. Há-os para todas as tribos e níveis culturais: James Dean, Andy Warhol, Amália Rodrigues, Diana de Gales. Um dia visitei o jazigo de Jim Morrison no cemitério do Pére Lachaise, em Paris. Entre o fluxo de freaks de todo o mundo, um casal russo acendia lamparinas e depunha no mármore um bolo parecido com a broa de mel. O seu primeiro acto de liberdade pós Perestroyka foi peregrinar à campa do ídolo que ouviam em cassetes da candonga. Maradona é mais um. A camisola trocada com Steve Hodge no fim nesse jogo memorável é um sudário sagrado para os argentinos. O inglês não a vende, apesar de lhe terem acenado com um milhão de dólares. No ardor do luto nacional, uma senadora propôs a estampa do herói para a nota de mil pesos. Não sei se houve aprovação, mas já tinha havido uma proposta idêntica para a nota de 10 pesos, o seu número em campo, mas rejeitada por estar ainda vivo.
Segundo a revista Piauí, há uma igreja Maradoniana, fundada em 1998, ano 38 d.D. (depois de Diego), na cidade de Rosário. Celebram o ano-novo a 30 de outubro, dia do seu aniversário. Fazem-se casamentos à volta duma bola e os fiéis rezam este Pai-Nosso: "Diego nosso que estás no estádio, santificado seja o Teu pé esquerdo, venha a nós a Vossa magia, que os Teus golos sejam recordados assim na terra como no céu, a Tua magia de cada dia nos dai hoje, perdoai aos ingleses assim como nós perdoamos a máfia napolitana, não nos deixes cair em fora-de-jogo, livrai-nos do Havelange e do Pelé".
Maradona aguarda deferimento para a posteridade num limbo jurídico. O estádio foi o lugar onde se sentiu livre e feliz, entre companheiros e adversários, com uma bola. Deixem-no ir.