PLANETA FUTEBOL - A crónica de Luís Freitas Lobo
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1 - Há jogadores que parecem pertencer a uma casta especial, tão admirável como misteriosa. Jogam como que um futebol de autor e são como jogadores de culto. São jogadores que sinto, durante os jogos, serem avaliados não como jogam ao longo dos 90 minutos de uma forma global, mas sim jogada a jogada. Se esta lhes corre bem, são idolatrados, admirados, quase canonizam esse momento e o jogador junto. Se ela, a jogada, pelo contrário, lhes corre mal, são sumariamente fuzilados pelos gritos e assobios da bancada.
A incompreensão por tentar algo diferente do que apenas o esforço com língua a arrastar na relva (sempre aplaudido, mesmo que supérfluo) é algo que sinto tocar a ideia de como também todas as expressões de arte suscitam, no inicial dos olhares, um indiferente encolher dos ombros até se tornarem lucrativas. Com este tipo de jogadores geniais incompreendidos, é igual. Olham para eles como conflituantes quando são apenas rebeldes com ânsia de liberdade criativa no jogo, dentro do relvado.
2 - Vejo uma entrevista de Guti, um desses exemplares mais puros, e percebo muito de como tudo isto pode interferir no seu percurso futebolístico. Fez com a bola coisas inimagináveis, sobretudo em gestos tático-técnicos (aquele passe de calcanhar na Corunha transformado em passe de golo, que deixou Benzema com a baliza aberta quando ele próprio, Guti, se isolara antes mas viu o guarda-redes a sair, é uma jogada eterna icónica). Teve gestos de insolência perante a plateia que o assobiava quando essa arrogante rebeldia técnica não funcionava, mas nunca deixou de ser quem era. Por isso lhes chamo jogadores de culto.
O que é difícil entender é que estes jogadores, aparecendo mais ou menos no jogo, dependem da sua inspiração
Guti nunca teve vida fácil no Bernabéu. Cresceu desde a cantera, jogava como afirmação de personalidade, mas apesar do talento que lhe saia quando a jogada... corria bem, para o seu lugar iam chegando sempre grandes craques todas as épocas, de Zidane a Beckham. E ele, claro, passava a maior parte do tempo no banco, mesmo que, quando entrava, expressasse logo essa sua diferença no jogo. Correndo bem ou mal.
Por isto explica-se que, mesmo sendo um dos mais maiores talentos da sua geração no futebol espanhol, nunca tenha jogado um Mundial ou Europeu. Afinal, uma consequência natural de tudo o que o rodeou e com que a sua personagem lidou.
3 - Um jogador que vejo como parecido, no estilo e percurso, é Riquelme, alguém que se quis colocar acima do que os cânones do futebol determinavam, desafiando uma época. Eram ambos jogadores... demasiado livres para um futebol demasiado escrito em antecedência. Riquelme conseguiu interpretar esse seu futebol na Argentina, no Boca Juniores, mas foi desintegrado em Barcelona, onde nunca essa sua expressão de revolta técnica foi bem entendida, porque também era julgado jogada a jogada.
O desejo de resolver os jogos tanto os faz, por vezes, tornarem-se responsáveis pela vitória (quando o génio sai) como pela derrota (porque não decidiu bem, ou, dizendo melhor, não correu bem, na prática, essa opção com desejos de génio), e então já eram responsáveis por a equipa ter perdido.
Muitos acusam estes jogadores que "só jogam quando querem". Nunca acreditei nisso. De Guti a Riquelme. O que é difícil entender é que estes jogadores, aparecendo mais ou menos no jogo, dependem da sua inspiração.
4 - Estes jogadores têm para mim uma definição clara: antes da técnica ou da tática, jogam com a imaginação. Veem o futebol de forma muito rápida e, assim, também o jogam mentalmente velozes.
As bancadas querem que eles resolvam jogos, mas acho/sinto que só verdadeiramente os admiram quando terminam a carreira e, olhando para trás, as mentes vão buscar os tais momentos diferenciadores eficazes-icónicos. Guti é o exemplo perfeito disso na sua história dentro do Real Madrid, que, com ele, ganhou três Champions, embora ele não tenha entrado em nenhuma Final. Irónico, perturbante e natural.