PLANETA DO FUTEBOL - Um artigo de opinião de Luís Freitas Lobo.
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1 É tempo para irmos ao baú das nossas cabeças onde estão memórias mais esquecidas. Achei engraçado ler o Castro falar da sua melhor recordação de miúdo apanha-bolas nas Antas quando, num aquecimento, quase levou uma bolada do Del Piero e este foi-lhe pedir desculpa. O então miúdo Castro nem se teria importado de levar com aquela bola: "Pensei logo: "O Del Piero a pedir-me desculpa, que espetáculo!"", recorda.
É disto que o futebol precisa mais do que nunca: um regresso às bases, o elementar "back to basics". Como quando olhamos para o ecrã do computador subitamente bloqueado e o melhor conselho técnico para resolver o problema é desligar e voltar a ligar. É muito isso que estamos a fazer com o futebol. A todos os níveis. Cada qual no seu papel e pequeno mundo. De jogadores à Imprensa. Não acredito na tese de que um mundo novo, mais humano, irá nascer. Será tudo igual. E se for assim, já não será uma sequela do "Mad Max" da tela para a vida real, que é o pior que nos ameaça.
2 Não era mais suportável treinar sozinho num ecrã de iPhone. Muitos clubes decidiram mandar os jogadores para férias. Os mesmos ecrãs podem agora encher-se doutras coisas. A expectativa de os profissionais voltarem a jogar em junho, para o que se fazem todos os esforços, choca com a impossibilidade do dito futebol não-profissional, para o qual já foi decidido que a época acaba.
É possível separar estes dois mundos, na abordagem que se faz deles e numa decisão destas? É, se metermos o que está no centro de todas as decisões e debates: a fator financeiro, que faz mover o mundo gigante e não apenas a casa pequena de um jogador ou dum clube do Campeonato de Portugal (cheio de jogadores que não vivem de outra coisa).
3 Não tenho, infelizmente, memórias de infância como a do Castro. Só mesmo a de, num sonho, ter estado numa barreira num livre marcado pelo Branco e, então, a bola passar a rasar e quase arrancar-me uma orelha. Não sei se entrou. Os jogadores sempre tiveram a força de desafiar o nosso imaginário. Era miúdo e pensava que só existiam nos cromos. Até que os comecei a ver jogar. Bem perto do terreno do jogo, nos pelados de todos os sonhos, que fascinaram a minha geração de, digamos, meia-idade.
Recordo estar bem perto deles e pensar: "Que jogador!" E olhar especado para as botas, altura, equipamentos (os bigodes também, quase todos usavam nesse tempo). Como os admirava. No entanto, eram só jogadores da III Divisão ou dos Distritais. Muito gostava o meu pai de ir ver esses jogos, pelos arredores do Porto ou Braga (muito vi o Prado aos sábados à tarde) e eu adorava. Se perdermos estas bases, perdemos tudo. Nós e o futebol. O que é a mesma coisa.
A velhinha dos tremoços
bbb Naquela tarde, ele chegaria primeiro. Ao Futre, também o descobri nos pelados. Lembro-me bem, erguendo a cabeça na multidão, num canto do velho Vidal Pinheiro, para o ver correr na faixa, num jogo em que o Katzirz não segurou depois uma bola fácil. Aquele Salgueiros (que comecei a ver desde a III Divisão) jogava e lutava muito, também. O Mariano a central era uma coisa incrível. Achava sempre que não ia ganhar o lance, que ia chegar tarde, tinha dificuldades técnicas, mas ali, no território dos pelados, não se podia pensar assim e ele ganhava quase todas aquelas bolas pinchonas e atirava-as para longe. E ela podia ir para longe mesmo. Naquela altura, nem bancada metálica havia num dos lados do campo. Só gente de pé, com chapéus de papel e cerveja, mais uns tremoços vendidos numa bacia por uma velhinha que ainda continuei a ver durante os anos seguintes. Achava que ela teria cem anos. Devia ter mais, dentro dela. Até que um dia... deixei de a ver. À senhora velhinha, aos tremoços, ao pelado e aos jogos de pé. Deixei de ver futebol como aprendi a gostar dele. Sinto-me sozinho e tenho medo. Preciso de outra vida.