FOLHA SECA - Opinião de Carlos Tê
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Van Basten, antiga lenda holandesa, sugeriu acabar com o fora-de-jogo para tornar o futebol mais atractivo, como se o futebol de hoje estivesse em vias de perder público. A proposta integra-se no âmbito da economia da atenção, que é um conceito fascinante.
O cliente do futuro pertence ao tempo Marvel. Falta pouco para que os estádios imitem a animação aeróbica dos resorts de férias
A maquinaria publicitária é tão intensa a promover produtos que a atenção do cliente se torna o produto mais arisco e desejado. Levamos com uma metralha de anúncios, pop ups, newsletters, que nos faz erguer um escudo instintivo. Somos o público-alvo a quem o marketing receitaria ritalina, se pudesse, como às crianças irrequietas, mas a nossa concentração desce à medida que o ruído aumenta.
A FIFA está apreensiva, ainda que o futebol continue no topo. Nem o VAR mexe com ele, apesar da espera patética de validação do golo. É um velho rapioqueiro sempre na moda: muda tudo menos a sua essência, assente num conservadorismo positivo que as marcas procuram na montra global. Mas resistirá ele à voragem do tempo?
Há fenómenos de massas, outrora prestigiosos, como a música pop, que se acantonam hoje em mega festivais bancados por empresas tecnológicas e cervejeiras. São Woodstocks sem lama, anunciados em rubricas life-style. Os artistas tocam em vários palcos ao mesmo tempo, anulando-se mutuamente. Circula-se entre um nome alternativo e uma bifana gourmet, regista-se no smartphone, vai-se à roda-gigante dar uma volta e desenjoar a barrigada. A música não fixa a atenção, é vendida em pacotes de entretenimento, ouvir é uma introspecção luxuosa do passado. As editoras recorrem a estratégias desesperadas: o último disco de Miley Cyrus incluía a venda dum preservativo na loja online com o nome do álbum - She"s coming - e dava direito a descarregar a versão digital. O público bocejou com tanta transgressão.
O futebol dispensa expedientes deste calibre, basta-lhe a história, a mitologia. O seu dramatismo pertence a um tempo duplo: aceleração e pausa. O cliente do futuro pertence ao tempo Marvel: efeitos especiais, explosões, fumaradas. Falta pouco para que os estádios imitem a animação aeróbica dos resorts de férias. O animador passará batuques techno-pimba nas paragens de jogo, enquanto o massagista passa o spray nos jogadores.
A FIFA autorizou a Federação Holandesa a testar novas regras nos juvenis: substituições ilimitadas, tempo cronometrado com a bola em jogo, expulsões temporárias, lançamento lateral com o pé, livres marcados por auto-passe. Tudo em nome do freguês entediado. A FIFA não sabe nem sonha que, quanto mais a Humanidade sobe a espiral da mecanização, da robótica, da inteligência artificial, mais uma religiosidade pagã fervilhará no forro social. O futebol é o tigre fabuloso que rosna nesse forro. A gente venera-o para purgar impulsos primordiais cada vez mais monitorizados, mas o marketing tentará transformá-lo num bichano para comedores de pipocas, limpinho, educado, tempo rigoroso, útil, extraído de manha, sururu, astúcia, tudo o que o fez grande. Não será já, mas um dia destes, quem sabe?