FOLHA SECA - Corona é o rei da intermitência, consegue ser o melhor da liga numa época e uma sombra na seguinte.
Corpo do artigo
No auge da frustração, um amigo confessou-me que jogar uns quartos de Champions com Marega na frente equivale a pôr o cantor da cascata de São João numa gaiola e esperar que ele cante.
Pode acontecer, mas é um milagre. E sendo verdade que o futebol é um terreiro de milagres, também é verdade que o peso do inevitável impõe-se quase sempre.
O desafio de quarta-feira teve esse peso. Mesmo por cima, os jogadores do Porto sabiam, no íntimo, que a derrota chegaria num detalhe de rapina pura, num deslize. Ainda assim, estão de parabéns pela organização e por jogar de olhos nos olhos - um destemor louvável mas insuficiente. A equipa depaupera-se a cada ano, ficam os que ninguém leva nem por metade da cláusula, e vão saindo os que fazem a diferença, vendidos por baixo para evitar a perda total, ou saindo em fim de contrato, não hesitando trocar uma titularidade por um banco de suplentes dourado.
Perante um Chelsea milionário, o talento da equipa, já de si curto, bloqueou. Otávio trocou os pés quando não podia. Corona não iluminou a noite com um rasgo de génio e acabou a fazer a diferença ao contrário. Acabará num Sevilha qualquer, no tal banco de suplentes dourado, a exemplo de Herrera e Alex Telles. Corona é o rei da intermitência, consegue ser o melhor da liga numa época e uma sombra na seguinte. No campeonato, os oito pontos de atraso traduzem o apagão do mexicano, e também o sumiço do Marega de outros anos, além da falta de Danilo e de Alex Telles. Zaidu esforça-se, mas é areia a mais para a sua camioneta. Um plantel mais rico dar-lhes-ia descanso e reflexão, mas é o que há.
Voltando a quarta-feira: Mason Mount e Chilwell foram as gazuas que derrubaram o Porto. Ambos são ingleses, o primeiro vindo da formação, o segundo transferido do Leicester por um balúrdio. Impressiona a linearidade com que disputam cada lance: a técnica ao serviço da eficácia, a explosão no espaço útil, a rapidez de execução, predicados cruciais para quem joga na liga mais exigente do mundo. Ao fim de seis anos de tirocínio, Otávio e Corona atingem o topo sem o refinamento da simplicidade, que é a eficácia, uma linguagem que não lhes está na massa do sangue - e se estivesse já tinham ido embora. Não resistem à voltinha e não se assumem quando a equipa mais precisa deles.
Os que farão a diferença no futuro estão no banco, se não forem empandeirados em saldo para equilibrarem as contas. No recente apuramento do europeu de sub-21, jogaram oito saídos da formação. Num dos jogos, ajudaram a vulgarizar a selecção inglesa, a mesma que foi de Chilwell e Mount. É preciso priorizar os que restam, dar-lhes o tempo que Corona e Otávio tiveram. Merecem-no não por serem portugueses, mas por terem na matriz um compromisso de técnica e eficácia reconhecido lá fora ao jogador nativo. Só lhes falta o ritmo e a intensidade.
Conceição deu cimento à equipa, mas sem o reboco e a flor letal da fantasia não se pode ir mais longe. Seguem-se mais noventa minutos. O cantor da cascata vai a tempo de cantar.