FOLHA SECA - Um artigo de opinião de Carlos Tê.
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O Europeu deixou uma sensação de incumprimento de serviços mínimos, não só por sermos os campeões em título como pela qualidade do cartaz: Ronaldo, Bernardo Silva, Bruno Fernandes, João Félix, Ruben Dias.
À banda operária de 2016 sucedeu-se uma orquestra que pareceu dividida entre quem luta pela bola e quem se poupa para quando a tem. E, mesmo aí, com a bola no pé, sobressaía uma falta de ideias sobre o que fazer com ela, daí as lateralizações, os atrasos, o estudo, a expectativa.
Contra a Bélgica, o medo de perder foi tanto que acabou por ser um convite à derrota. Sem traje de gala ou fato-macaco, houve um desfile de roupa casual onde era suposto acontecer qualquer coisa, um rasgo artístico ou um golpe da divina providência. O terceiro golo à Hungria, em 33 toques, prenunciava um caminho de récitas até à final, mas o malho alemão lançou a dúvida. As televisões deram destaque à corrida de Ronaldo aos 15 minutos de jogo - 97 metros à velocidade de 32 km por hora - e à faena sobre Rudiger, uma cena que chegou a passar em câmara lenta ao som do Danúbio Azul, com o ginete lusitano toureando o pobre defesa alemão perdido no espaço cósmico.
O patrioteirismo jorra duma reminiscência de povo eleito que, incapaz de potenciar o talento individual no colectivo, vibra com faenas e recordes. A outra face desse estado é a reacção amarga ao fracasso, a indignação contra os espartilhos tácticos que sufocam a criatividade, a apologia da libertação do futebol e da selecção - por consumir o espaço emocional do país. Com uma rectaguarda deste jaez, que vai dos que se escandalizam com a devoção excessiva à selecção aos que celebram faenas e se agarram ao "perdemos mas a melhor finta foi nossa", o grupo devia contar só com a sua competência, mas apareceu mal preparado, sem um propósito de jogo, fazendo jus à máxima de que uma equipa é mais do que uma soma de nomes sonantes.
A mim, para ficar em paz com a nossa eliminação, bastou-me ver o Croácia-Espanha. Luís Enrique deixou de fora nomes como Ramos, Piqué, Carvajal, Isco, e chamou gente nova. Dos consagrados, Jordi Alba nem joga sempre, e Morata defende, ataca, corre, faz faltas, e ainda é zurzido pela Imprensa. A Espanha não deslumbra, mas tem uma ideia proactiva de jogo. Fernando Santos manteve-se fiel aos indiscutíveis, mesmo em baixo de forma. Esperou em vão por Bernardo Silva, e Bruno Fernandes foi um corpo estranho exteriorizando a estranheza em tiques de irritação. Faltou gente fresca e irreverente, como Pote. Se corresse mal, o treinador não tinha perdão. Assim, correu mal na mesma, mas caímos de pé, uma infeliz metáfora consoladora.
Criticar Fernando Santos não é ser ingrato pelo que fez até aqui, mas dizer que resta olhar para a frente e tentar ganhar o mundial, implica tomar atitudes pragmáticas, como o almirante das vacinas. No fim, nem tudo foi mau. Ninguém se ficou rir no grupo da morte. E não houve desavenças entre famílias de jogadores, como aconteceu em Bucareste, no adeus da França perante a Suíça.