Um artigo de opinião de Ricardo Nascimento
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Imagine que, depois de anos a correr atrás da bola, a suar no pelado e a ouvir gritos como “encosta à linha!” ou “acorda Tó Mané!”, um jogador descobre que afinal podia estar a ganhar mais. Não por ter marcado 15 golos na distrital. Mas porque, diz quem percebe disto, há regras no futebol atual que podem ser ilegais. E agora, surpresa: está a formar-se a maior equipa do mundo, mas no tribunal.
Estamos a falar de 100 mil jogadores a querer processar a FIFA por danos. Sim, cem mil!
Como assim, “jogadores a processar a FIFA”?
É isso mesmo. Há uma fundação nos Países Baixos chamada Justice for Players — sim, soa a série da Netflix — que apresentou uma ação popular contra a FIFA. O argumento é que as regras de transferências atuais limitam a liberdade de circulação dos jogadores e baixam os salários artificialmente. Dizem eles que andamos desde 2002 a jogar com o campo inclinado.
E quem está a puxar os cordelinhos? Um advogado belga chamado Jean-Louis Dupont. Se o nome lhe soa familiar é porque foi ele que liderou a equipa jurídica do famoso caso Bosman — aquele que, nos anos 90, acabou com a história de um jogador ser propriedade do clube mesmo depois do contrato acabar. Um “plot twist” que fez tremer o mundo da bola.
Agora, Dupont está de volta com um “spin-off” — e desta vez não é para libertar um jogador, é para libertar o mercado inteiro.
O que é que os jogadores querem?
Dinheiro. Bastante. Querem ser compensados pelas perdas salariais dos últimos 20 anos — perdas essas, segundo um estudo de consultores (daqueles caros), que chegam a 8% por jogador. Multiplique por centenas de milhares e temos um processo que pode custar à FIFA vários milhares de milhões de euros.
Isto, claro, se a justiça neerlandesa lhes der razão ou existir reenvio do processo para o Tribunal de Justiça da União Europeia. Mas a ação já foi aceite, e com isso a FIFA começa a sentir o aquecimento para uma bela audiência judicial.
E a FIFA o que diz?
Procurei alguma tomada de posição, mas para já está em silêncio. Diz que está a “avaliar a situação”. Nos últimos anos, a FIFA já ajustou algumas regras para sair bem na fotografia. Mas, pelos vistos, os jogadores não querem maquilhagem: querem cirurgia estrutural.
Mas que regras são essas?
Ora bem: são regras que dificultam a mobilidade dos jogadores — como contratos longos, indemnizações absurdas para saírem (dignas daqueles divórcios milionários) e comissões de empresários que fazem parecer que estes jogam mais do que o próprio jogador.
Os jogadores acham que, com um mercado livre, tinham tido mais hipóteses de mudar de clube e melhorar salários.
O que pode acontecer?
Se o processo tiver pernas para correr (ou pés para jogar), pode acontecer um “hat-trick” de consequências:
1. A FIFA pode ter de pagar milhões em indemnizações;
2. Pode ser forçada a mudar o sistema de transferências;
3. E, pela primeira vez, podemos assistir ao mercado de verão… no tribunal.
Sim, parece coisa de argumento inventado, mas a ação é real e está a avançar. E como diria qualquer treinador no final de uma época: “vamos ver o que o futuro nos reserva”.
Em Portugal, o tema ainda não chegou à bancada central do debate público, mas os efeitos poderão sentir-se em breve. Um eventual acórdão europeu com força disruptiva pode obrigar federações, clubes e legisladores a rever o modelo vigente. Os jogadores portugueses (atuais ou ex-jogadores) também podem juntar-se à ação. E se o sistema for mesmo ilegal, o que, confesso, me suscita dúvidas, tal significa que muitos dos nossos craques podem ter sido transferidos de forma contrária ao Direito da União Europeia.
Este caso é sério, mesmo que pareça piada. E pode mudar para sempre o futebol profissional. Mas, até lá, vamos acompanhando este jogo com árbitros de toga, VAR em formato acórdão e mais de 100 mil jogadores a fazer pressão alta.