As maiores festas podem ser feitas após um titulo, mas em termos de tensão dramática e lágrimas nada se compara com evitar a descida no limite.
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1 - As imagens e sentimentos causam, por vezes, alucinações. O futebol tem esse poder.
Jorge Costa voltou a deixar a marca da sua postura serena. Sofre mais por dentro
Podem as maiores festas, loucuras, brindes e sorrisos serem feitos após a conquista de um título mas, em termos de tensão dramática, emoção na pele, choro, alegria e emoção no máximo nada se compara aos momentos de evitar a descida de divisão mesmo no ultimo jogo, após uma época sofrida no limite.
É impossível não fazer este paralelo (re)vendo as imagens do Boavista campeão, há 20 anos, e as de agora, vendo as lágrimas e emoções de todo o mundo axadrezado no ultimo jogo, sofrido até ao fim. E atenção, que nesse mundo de emoções finais descontroladas estavam desde as lágrimas de um campeão do mundo, o irascível gaulês Rami, um professor catedrático dos bancos, Jesualdo Ferreira, o adjunto que ganhou tudo como jogador, Rui Águas (de quem diziam nem no festejo dos seus golos transmitia emoção), um jovem lateral-esquerdo, Ricardo Mangas, até aos adeptos enlouquecidos num monte atrás duma bancada, que que permitia ver um pedaço do relvado.
2 - O jogo foi sofrido e quase fugia. Sentiu-se isso, mas o penálti que podia ditar a derrota bateu no poste e foi para fora. Pouco depois, o penálti que podia ditar a vitória (e salvação) bateu no poste e... entrou. O herói aos quadradinhos que antes também marcara de cabeça, tem ascendência de craque impossível. Yusupha, o avançado truculento estilo cantor reggae, é filho dum jogador que adorava ver nos resumos da Liga espanhola nos anos 80, o Biri-Biri, melhor jogador de sempre da Gâmbia.
Vinte anos depois, este é outro Boavista, calcinado pelo tempo e pelo muito que passou. Vejo os seus jogos e sinto que muitas vezes, mais do que estar a jogar contra o adversário (grande ou pequeno) que tem pela frente, está a jogar contra a sua história e os seus feitos. É uma luta desigual. Impossível de ganhar. O clube necessita de se reinventar historicamente. Manter as raízes, mas perceber os novos tempos e nova correlação de forças entretanto criada. Quase uma refundação de estatuto competitivo. Às vezes, parece que ignora tudo isto e vive (prepara épocas e até jogos) no museu.
3 - No polo oposto da jornada não se sentiu tanto o drama da descida pela forma copiosa como o Farense caiu nos Açores. A equipa resumiu num jogo a imagem de uma época: sedutora a atacar (o que fez dizer, como ilusão, que a equipa joga bem) e instável a cometer demasiados erros defensivos (o que faz dizer que, assim, a descida era inevitável). Caiu com honra, sem gritar contra o mundo. Jorge Costa voltou a deixar a marca da sua postura serena. Sofre mais por dentro. Era impossível a equipa ter o seu sangue. Já não se fazem bichos assim em campo (nem fora dele).
Nova ilha europeia
É impossível não vislumbrar o triunfo do romantismo na qualificação do Santa Clara para as provas europeias. Uma região de sonho (em cada esquina, uma vaca) que viveu sempre distante do poder, construiu em surdina uma bela equipa de futebol, fazendo negócios ao mesmo tempo. Basta recordar que foi nesta mesma época que vendeu o seu ponta-de-lança, Thiago Santana (que tinha então quase todos os golos marcados pela equipa), e o médio mais influente, Rashid. Descobriu, porém, ao mesmo tempo, um japonês que, com eficácia militar, controla o meio-campo, Morita, e reacendeu a inspiração ofensiva de jogadores antes meio complicados, como Alano e Carlos Júnior, junto dum avançado entre o possante e uma barriguita a mais, Cryzan, mas que trata a bola por tu (atrás de cada pedra, um jogador).
A fama de defensivista de Daniel Ramos ganha agora contornos ligados ao primado da organização.
O clube, acredito, terá a noção que a sua realidade não é a mesma da equipa atual. O deslumbramento viverá alguns dias. Saber o seu exato valor é a chave para volta a fazer equipas como esta.