Opinião de Ricardo Nascimento
Corpo do artigo
Nos tempos que correm, já não basta correr bem, rematar forte e aparecer no segundo poste com tempo e estilo. Hoje, para se ser jogador de futebol, é preciso dormir — e bem. Não por recomendação médica, mas por imposição contratual. Sim, o descanso virou cláusula. O que antes era uma sugestão do fisiologista passou a ser uma obrigação com força legal. Bem-vindos à era do “sono com rendimento”.
Alguns contratos de trabalho desportivo incluem cláusulas que determinam um número mínimo de horas de sono por noite, monitorizadas por relógios inteligentes, pulseiras tecnológicas ou aplicações que só não emitem ressonares em tempo real porque isso podia violar o RGPD. É o chamado "direito ao descanso… sem descanso". O atleta acorda e, antes sequer de saber se está convocado, já recebeu por notificação push o seu sleep score.
As vantagens, claro, existem. Um jogador bem dormido corre mais, lesiona-se menos, toma melhores decisões e evita partir o tornozelo a tentar um passe de calcanhar de primeira. Além disso, dizem os clubes, controlar o sono do atleta em casa evita estágios longos e aborrecidos longe da família — o que, convenhamos, até parece simpático. Mas há aqui um dilema antigo: onde acaba a performance e começa a privacidade? Será legítimo obrigar alguém a ir para a cama às 22h30? E se for para ler poesia sueca em vez de ver TikTok? E quem é que vigia o vigia do sono?
Ainda mais ambiciosas são as cláusulas sobre períodos de repouso obrigatório. O clube determina que, em dias específicos, o jogador deve estar em casa a determinada hora, com os ecrãs desligados, luz ambiente reduzida e infusão de camomila bebida até à última flor. São as chamadas “noites blindadas”. Na prática, o atleta torna-se uma espécie de monge urbano com patrocínio da Nike. Não se exige fé — exige-se sono profundo, fase REM e, se possível, sem sonhos excitantes sobre o pagamento da sua cláusula de rescisão.
Do ponto de vista jurídico, isto levanta questões interessantes. É certo que o desporto profissional justifica exigências acima da média — mas há um limite para o controlo? O trabalhador comum tem direito ao descanso. O jogador, aparentemente, tem o dever de descansar. E de o provar com gráficos.
E se o atleta estiver de coração partido? E se a parceira quiser conversa (ou algo mais) à meia-noite? E se houver um bebé a chorar? Um cão a ladrar?
As sanções, nos contratos mais exigentes, podem ir de multas por incumprimento a exclusão temporária dos treinos. O atleta acorda maldisposto, chega ao treino, e é informado que vai treinar à parte por ter dormido apenas cinco horas. É uma versão moderna do “estás castigado” — mas com gráficos e sensores.
Há também o risco da desigualdade: há quem durma como uma pedra e quem lute contra insónias com mais esforço do que o que faz na pressão alta. Uns têm relógios biológicos suíços, outros andam ao ritmo de um cuco desregulado. O contrato não distingue. O algoritmo não perdoa.
Em última análise, tudo se resume à velha máxima da gestão desportiva moderna: "medir é poder". E se há coisa que o futebol contemporâneo adora, é medir. Quilómetros percorridos, batimentos cardíacos, passes, sprints — e agora, horas dormidas. Um dia destes, um jogador vai fazer “hat-trick” e ser substituído porque, segundo os dados, a energia circadiana entrou na reserva e devia estar a dormir a sesta desde o minuto 41.
Dormir passou de luxo a obrigação. E o futebolista, esse gladiador moderno com contrato de atleta e vida de monge, já não pode só contar carneirinhos. Tem de os declarar por escrito, assinados e com carimbo do preparador físico.