FOLHA SECA - Uma opinião de Carlos Tê
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Portugal disputou a Liga das Nações ante duas bestas negras do nosso imaginário futebolístico – e venceu-as. A campanha forneceu sinais curiosos nos dois jogos: dar a volta depois de estar a perder e não baquear nos penáltis. Martínez não esbanjou a maré alta dos campeões do PSG e pôs os três que estavam em campo a marcar, com Bruno Fernandes e Rúben Neves, reservando a Diogo Costa a sua parte. Face à Alemanha, deu-se até o inaudito: após a reviravolta, e com vinte minutos por jogar, a equipa resistiu ao stresse da vitória iminente (algo que me assaltou de imediato ao projectar o meu medo de adepto) e não defendeu o resultado. E não só não recuou como foi para cima dos atónitos alemães falhando golos cantados.
No dia seguinte, o comentariado de plantão entreabriu os bastidores do pequeno Portugal e expôs o plano de Pedro Proença para substituir Martínez por Mourinho ou Jesus, visando cortar o legado do seu antecessor e livrar-se, por arrasto, do melindroso dossier Ronaldo. Este, a par da novela, decidiu tecer loas a Martínez na conferência de Imprensa antes da final, vitaminando o balneário. O lance pode ter sido uma retribuição pela cobertura recebida do míster em vários jogos como titular discutível. Certo é que o astro apareceu em plano razoável, ao invés de jogos em que chegou a ser penoso vê-lo em campo. Certo, também, apesar da bizarra experiência de João Neves a defesa direito, é que a tibieza que ataca na hora H não apareceu.
Talvez a imprevista vitória tenha minado o plano do presidente da FPF. Em Lisboa, nos discursos da praxe, emendou a postura evasiva sobre o futuro de Martínez e deu-lhe um desmedido voto de confiança, numa lapidar demonstração de tartufice institucional, não fosse esse modo público de estar um património herdado do Conselheiro Acácio, que Eça nos legou com tanto carinho. Claro que a taça não lhe deu hipótese, mas podia ter engolido o sapo sem recurso a arrebatamentos de agremiação popular. Pior, só o riso de Fernando Gomes no sofá.
O Sporting descobriu Nuno Mendes num bairro de Sintra sem que a sua retinta pretidão de menino o impedisse de ser um português legítimo. Sorte dele – e nossa
Isto passou-se entre o dia 8 e o dia 10, dia em que Lídia Jorge fez uma límpida análise às camadas do ser português; e neonazis atacaram um actor prestes a representar Camões numa peça; e um dignitário religioso doutra fé foi injuriado por um ex-combatente, e outro acusou um candidato a PR de pactuar com traidores antes de se juntar a quem fazia saudações nazis, perante a apatia do quase PR; e no dia em que um bando de “casuals” do Sporting incendiou um carro com adeptos do Porto após um jogo de hóquei. A unir estes incidentes, a coincidência de não haver negros e ciganos ao barulho, apenas patriotas puros. Ora, glosando à má fila o grande poeta Gedeão, diria que lágrimas, se as houvesse, teriam cloreto de sódio e vestígios de ódio, mas seriam de crocodilo na face do pantomineiro-mor.
Dois dias antes, Nuno Mendes destacara-se em Munique. O Sporting descobriu-o num bairro de Sintra sem que a sua retinta pretidão de menino o impedisse de ser um português legítimo. Sorte dele – e nossa. Eram dias mais límpidos.