PLANETA DO FUTEBOL - Nunca percebi se estas personagens querem mesmo ser supra-humanas ou, no fundo, apenas fugir da sua fragilidade consciente e escondida que sabem ter. Serão as duas.
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1 - Há imagens que nos devoram a vida porque têm o poder de condensar nelas todas as emoções e contradições que ela abriga. Nessa "montanha-russa" da existência é como se vivêssemos três vidas. Ou mais, até, mas sempre mais do que o "só se vive duas vezes" de James Bond.
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Tenho esta sensação vendo Vialli de regresso à vida nos estádios de futebol, na bancada, voltando a sentir o seu jogo, após uma luta interminável mas que está a ganhar contra o cancro que entrou dentro do seu corpo de futebolista, com o qual vivera uma vida anterior num nível emocional e técnico supra-dimensional. Depois, botas penduradas, começaria carreira nos bancos como treinador-jogador do Chelsea de meados dos anos 90. Nunca estabilizou emocionalmente. É de uma casta única.
Nunca percebi se estas personagens querem mesmo ser supra-humanas ou, no fundo, apenas fugir da sua fragilidade consciente e escondida que sabem ter. Serão as duas.
2 - A decisão de Mancini o chamar para trabalhar com ele na seleção italiana tem a força superior duma mera opção técnica. Na escolha, está a memória do passado comum como jogadores revolucionários do status italiano ao levar a mágica Sampdoria, entre 91 e 92, à conquista do Scudetto e à final da Liga dos Campeões.
Tempos fascinantes, irrepetíveis duma equipa inesquecível, com Pagliuca na baliza, o eterno Vierchowod na defesa, Toninho Cerezo balzaquiano a comer metros em passada larga no meio-campo, Lombardo a voar baixinho numa faixa e a dupla Vialli-Mancini a brilhar com jogadas e golos encantados.
Entendiam-se na perfeição. Onde um era o fogo, Vialli, indomável a atacar cada bola, o outro era a classe, Mancini, nos toques que faziam a bola parecer de veludo e chegar dócil a quem (Vialli, claro) a encaminhava para a baliza. A porcelana da técnica e a garra musculada juntas.
Depois, Vialli brilharia, mais a solo, já com corpo de culturista, na Juventus física de Capello, um exército de futebol campeão europeu em 96, tendo Ravanelli a explodir na frente. Entretanto, a sua personalidade indomável tinha-o afastado da seleção na era-Sacchi.
ecordo Vialli a jogar e recordo um caleidoscópio de emoções. Marte e Vénus. Atravessou Itália e Inglaterra, mas nunca conseguiu voltar a ser verdadeiramente quem era no início
3 - Recordo Vialli a jogar e recordo um caleidoscópio de emoções. Marte e Vénus. Atravessou Itália e Inglaterra, mas nunca conseguiu voltar a ser verdadeiramente quem era no início. Tanto oscilava entre a forma mais cativante de sucesso como as aventuras mais arrogantes, entre mudanças de visual que tanto eram o Tom Sawyer adulto de Génova como o Gengis Khan de cabelo rapado de Turim e Londres.
Claro que o que me leva a escrever sobre ele é o fascínio da mistura de todas estas imagens, mas, no início, foi a sua primeira espécie. Até porque mais do que personalidade de camaleão irascível todas elas refletiram, quase sempre, instabilidade psicológica (algo impensável no sangue frio e postura de estátua atenta e rápida - a mais bela contradição possível - que faz a essência de vida dum camaleão)
Vialli foi produto dum Calcio que então era a meca das estrelas. Em Inglaterra, recuperou muito da sua essência que procurava porque só na Velha Albion, então a acordar para a globalização faraónica descaracterizante, ele voltou emocionalmente às origens. Mesmo que não se tenha apercebido disso totalmente.
4 - O "símbolo requintado" dum tipo de jogador típico numa época de transição entre dois tempos. Estas são, em geral, épocas perdidas, cheias de contradições e, por isso, com personagens anfíbias que mergulham e voltam à superfície sem se molharem. Terá um lugar na fogueira das paixões na força das memórias num presente em que fala do tratamento de quimioterapia que faz para combater a doença como "um terrível bombardeamento a que me sujeito, a maioria das vezes ficando entorpecido ou semiconsciente".
Voltar a vê-lo com Mancini faz o imaginário voar para Génova de início dos anos 90. Nesse local de unicórnios, Vialli está protegido. O presente não será capaz de o perseguir até tão longe.