Cueca encarnada europeia
Quando Taarabt fez isso a Erokhin no último jogo na Luz, a exibição do Benfica, sofrida até fim da primeira parte e quase fora da Europa, tornou-se de repente num festival de futebol ganhador
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1 - Adiantar a bola fazendo-a passar por entre as pernas do adversário. A definição técnica já é suficiente para quem o sofre esconder a cara, mas, se o nome mais explicativo do que aconteceu for dito alto ("Cueca!"), ainda parece tudo pior.
"Bruno Lage olhou por fim para o território europeu e preparou-se para que, se falhasse no último jogo, ninguém lhe pudesse apontar nada"
Não serve para ganhar jogos por si só. Longe disso. Em geral, serve para um jogador vexar um adversário. E, quase sempre, nunca há necessidade objetiva disso, mas o futebol é mesmo assim. As cuecas são o ópio tecnicista do craque. E quando se está a ganhar, são o elixir inebriante de toda a turba nas bancadas.
Quando Taarabt fez isso a Erokhin no último jogo na Luz, a exibição do Benfica, sofrida até fim da primeira parte e quase fora da Europa, tornou-se de repente num festival de futebol ganhador (de um golo coletivo fantástico a um autogolo caricato).
2 - Bruno Lage olhou por fim para o território europeu e preparou-se para que, se falhasse no último jogo, ninguém lhe pudesse apontar nada. Aquela era a melhor equipa (sem rotações, gestão, frases inócuas como "estes são os melhores jogadores para este jogo"), sem sombra de dúvida ou pecado exibicional.
Ganhou resolvendo logo a abrir a segunda parte com um chamado golo de treino, pela forma como a bola entrou sucessivamente nos espaços vazios certos, os jogadores apareceram bem por fora, o cruzamento tenso, e outro surgiu, rápido, por dentro, a finalizar.
Cervi fez o golo, mas, antes, eis o jogador que se assume de forma indiscutível como o ponta de lança do Benfica versão 2020: Vinícius. Está expresso na potência, na técnica de execução, na serenidade com que faz as coisas e na inteligência de jogo. Faz golos, mas sobretudo joga muito antes desse remate final. Mais do que só ponta de lança, é jogador de corpo inteiro. Pergunta-se se jogou bem ou não (e não apenas se marcou ou não).
"Bruno Lage não pode ser... dois treinadores em apenas um (campeonato e Europa). Por fim percebeu isso, no jogo-limite, e ganhou"
3 - O 4x4x2 pode ser um 4x2x3x1 (ou 4x3x3, ou, em maior rigor, um 4x1x3x1x1, com Chiquinho segundo avançado, a espécie que a dinâmica ofensiva de Lage buscava desde o fim da época passada). Os princípios podem agora voltar a ser desenhados naturalmente, sem forçar jogadores a fazerem coisas que não sabem. Fica mais simples assim, naturalmente.
Olhar para alguém que fez três dezenas de jogos no campeonato e só não ganhou dois, e olhar para alguém que faz outro saco de jogos noutras competições e foi perdendo ou empatando (jogando com um "onze-objeto tático misterioso") era algo que não fazia sentido para a imagem de um treinador. Turvava-a sem necessidade. Bruno Lage percebeu isso. Não pode criar dúvidas bipolares em quem analise. Porque, no fim, se perde um dos 30, esse será o decisivo. Os outros, estatística fria.
A quente e a frio
Cada vez mais a tensão que se vive num jogo tende a explodir no estado mais emocional, impensado e intempestivo, logo o árbitro apita para o final. Em palavras e em gestos. Tenho tendência a desvalorizar o que se passa nesses momentos imediatos, pela tal invasão emocional que toma conta sobretudo do treinador, o maior responsável. Desvalorizo mas não posso, obviamente, ignorar. Quer os desabafos de Sá Pinto quer as reações de Conceição (para pegar nas desta semana), embora cada uma, nas suas proporções, seja produto disso, mas, muitas vezes, já traços de viver o jogo que têm de controlar quando ele acaba.
"A ação a frio não pode ser sucedânea da reação a quente"
O futebol é um jogo de emoções humanas que não podem ser incontroláveis (até porque serão sempre sobredimensionadas). Devem ser, antes do mais, autoanalisadas por quem as faz e filtradas por quem os rodeia. Os gestos dos dias seguintes, já racionalmente frios, não podem ser sucedâneos de emoções a quente. Essa é que é, para mim, a questão. Bastaria uma simples frase, de cada um deles, para pôr ponto final em tudo. O resto? Ruído.