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Esta crónica começou numa conversa com a minha sobrinha Margarida Costa, guarda-redes de futebol. Disse-me: "Tio, escreve lá sobre isto porque não faz sentido nenhum." E tinha razão: não faz mesmo.
O FC Famalicão (feminino) recebeu uma carta dourada: convite para jogar na Liga BPI. Vestiu o melhor fato, contratou jogadoras, montou a estrutura, alinhou patrocínios. Estava pronto para o baile da primeira divisão. Só que, à porta, apareceu o segurança (o Tribunal Arbitral do Desporto) a dizer: "Desculpem, mas a sala já está reservada para o Damaiense."
É este o resumo do mais recente imbróglio do futebol feminino português: quem afinal deve jogar na elite, Damaiense ou Famalicão?
O caso começa com os requisitos de licenciamento da FPF. O Damaiense não os teria cumprido, ficando de fora. O Famalicão foi chamado a ocupar o lugar. Planeou tudo, assinou contratos, fez a pré-época a pensar na Liga BPI. Mas o Damaiense não desistiu: recorreu ao TAD, pediu providência cautelar... e ganhou. Resultado: volta ao convívio das melhores.
Do lado do Famalicão, o argumento é simples: agiram com base no convite da FPF e não foram avisados de que a coisa podia ser provisória. É como comprar casa depois de o banco dar aprovação verbal, já terem as chaves na mão e, à última hora, dizerem que afinal o crédito ainda estava "em avaliação".
Do lado do Damaiense, a lógica é outra: quem cumpre (ou demonstra poder cumprir) os requisitos tem direito a estar na liga. E se a justiça lhes deu razão, não devem abdicar.
E aqui entra a ironia jurídica: o direito à confiança legítima joga contra a rigidez dos critérios de licenciamento. É um choque de valores - e, como em qualquer choque, quem sofre são os ocupantes: jogadoras, treinadores, patrocinadores e adeptos.
Do ponto de vista legal, o TAD decidiu que, pelo menos até recurso, o Damaiense fica na primeira, a tal festa na penthouse. O Famalicão, que se preparou para o baile de gala, tem de voltar à festa da garagem: a segunda divisão. E não é um detalhe. Significa outro calendário, outra visibilidade, outros patrocínios - e até outro moral no balneário.
No meio disto, a Federação surge como maestro de uma orquestra onde dois violinistas tocam a mesma pauta. Só que há apenas uma cadeira disponível. O resultado não é música, é dissonância.
Quem tem razão? Creio que ambos. O Damaiense, porque alegadamente cumpriu os requisitos e foi reintegrado por decisão judicial. O Famalicão, porque foi induzido em erro pela própria estrutura que devia garantir transparência.
O problema é que a bola já começou a rolar. E, como no xadrez, cada movimento tem consequências: deslocações, plantéis, contratos, patrocínios. O problema é que o tempo voa, mas a justiça corre sempre em ritmo de pré-época.
No fim, sobra a sensação de que a FPF poderia ter puxado uma cadeira extra para a mesa em vez de deixar alguém de pé. Manter as duas equipas seria incómodo no calendário e traria dores de cabeça logísticas, mas seria a forma mais justa de não castigar quem investiu de boa-fé nem quem lutou nos tribunais. E até teria uma boa narrativa para o futebol feminino: mais equipas, mais competitividade, mais jogadoras em palco.
Assim, temos um campeonato que começa com ferida aberta e promessas por cumprir. No futebol, quando o empate de algo importante persiste, joga-se prolongamento. No direito desportivo, às vezes bastava prolongar o bom senso para não deixar ninguém de fora.