A opinião do advogado Ricardo Nascimento sobre o bónus (500 mil euros) a que o Braga terá direito se o FC Porto for campeão, no negócio da transferência de David Carmo.
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Vem esta crónica a propósito de uma opinião da minha querida amiga Rita Garcia Pereira, que expressou haver um óbvio conflito de interesses no bónus (500 mil euros) a que o Braga terá direito se o FC Porto for campeão no negócio da transferência de David Carmo. Na CMTV, a ilustre advogada foi ainda mais longe e afirmou que, nestes termos, o contrato é ilegal, o que já me parece muito discutível.
Começo por dizer que considero igualmente que este tipo de cláusula configura um potencial conflito de interesses. Esta situação já aconteceu e a minha opinião mantém-se. A título de exemplo, o caso do jogador Chiquinho, em 2019, em que o Benfica teria de pagar 750 mil euros ao Moreirense em caso de apuramento para a Liga dos Campeões. Ou, recentemente, o contrato de Jack Grealish, transferido do Aston Villa para o Manchester City, selado no começo da temporada passada, que previa que o emblema vendedor receberia um prémio de 15 milhões de libras no caso de os citizens vencerem a Premier League, como aconteceu.
Pior, com a coincidência de o jogo do título ter sido precisamente entre estas duas equipas, acabando o City por vencer por 3-2 no Etihad depois de ter estado a perder por 0-2. Acresce que o próprio rival Liverpool também jogou na última jornada com o Wolverhampton, clube que receberia um bónus da transferência de Diogo Jota, caso o português e os Reds lograssem vencer o campeonato.
"Tais contratos [como o de David Carmo] podem até não ser ilegais, mas não basta só não serem, é preciso que não pareçam"
Deixo absolutamente claro que não tomo como corruptos os clubes ou as SAD que fazem este tipo de negociações - ao contrário do que defende a minha colega, creio que tais cláusulas não são ilegais, existem também noutros campeonatos e aludem a diferentes competições -, mas entendo que as mesmas deveriam estar proibidas em nome da verdade, da confiança, da transparência, da excelência, da verticalidade, do fair-play, etc. É a velha história da mulher de César: não lhe basta ser honesta é preciso parecer.
Uma coisa é negociar um prémio para o jogador transferido como incentivo para ganhar o campeonato. Outra, bem diferente, é atribuir tal prémio a outra equipa da mesma competição. Será quase ofensivo pensar que qualquer clube perderia de propósito para receber um bónus deste tipo, mas tal como a mulher de César, não evitamos o escrutínio público e fica a dúvida acerca da verdade desportiva e lealdade da competição.
Reitero que a perceção não é sinónimo de realidade, mas é tão desnecessário existirem situações destas em que recrudesce a dúvida e a desconfiança, ficando em causa a reputação desportiva dos clubes que negoceiam tal tipo de cláusula, com (aparente) conflito de interesses, que mais valia proibir as mesmas.
"A questão situa-se no bom senso ético-social, se assim poderei definir"
Não obstante, parece-me que o contrato não é ilegal. Não conheço qualquer norma do Regulamento das Competições da Liga Portugal ou do regime jurídico das sociedades desportivas, a que ficam sujeitos os clubes que pretendem participar em competições profissionais, que proíba tal tipo de cláusula. A questão situa-se no bom senso ético-social, se assim poderei definir.
Relativamente a conflito de interesses, tenho a mesma opinião acerca de árbitros que sejam agentes de marcas desportivas que patrocinam clubes. Recordo o caso do árbitro Hugo Miguel, em que a Comissão de Instrutores da Liga decidiu arquivar o processo instaurado para averiguar uma eventual incompatibilidade entre a atividade profissional de agente desportivo da Macron, que patrocinava o Sporting, e a sua carreira de árbitro, situação da qual continuo a ter as maiores dúvidas, ainda que o negócio com o Sporting tenha sido realizado com a casa-mãe da marca italiana e não diretamente com o árbitro internacional.
Outros sim, não deveriam existir patrocínios de empresas pertencentes a um presidente de um clube a outro clube, como aconteceu com a Footlab de Rui Costa, que foi patrocinadora do Casa Pia, equipa adversária do Benfica B na II Liga e que está de volta à primeira divisão.
Tudo isto deveria ser impedido, devendo o gabinete de transparência da Federação Portuguesa de Futebol e a Liga Portugal promover uma discussão sobre este tipo de situações de potenciais conflitos de interesses.
Indo ainda mais longe, a própria UEFA, que tão bem esteve no combate ao conflito de interesses - quanto à atuação dos intermediários em diferentes funções à luz dos reflexos da vedação de terceiros "Third-Party Ownership", através do Regulamento sobre Status e Transferências de Jogadores da FIFA (RSTP), que proibiu que sujeitos alheios ao mundo do futebol detenham uma percentagem dos direitos dos atletas -, deveria igualmente encontrar forma de evitar casos em que clubes detidos pelo mesmo patrocinador disputam o mesmo grupo na primeira fase da Liga Europa, como aconteceu com o Red Bull Salzburg e o Red Bull Leipzig. Também não parece bem que a gigante russa Gazprom seja um dos patrocinadores oficiais da UEFA Champions League e, simultaneamente, proprietária do clube russo FC Zenit e tenha sido, até há uns meses, patrocinadora do Schalke 04 e do Chelsea, clubes que assiduamente participam em tal competição, sendo que o último até venceu a edição de 2020/21.
Ou o polémico caso da negociação entre a Real Federação Espanhola de Futebol (RFEF) e o reino da Arábia Saudita relativa à realização da Supertaça naquele país, na época passada. De acordo com o contrato assinado, se o Real Madrid e o Barcelona falhassem a presença na final four da Supertaça, o país do Médio Oriente teria direito a uma indemnização de cinco milhões de euros, caso falhasse um, ou 10 milhões na eventualidade de não se apurarem os dois, o que é uma situação bastante anómala e controversa: ficar a própria RFEF (lá está, aparentemente) a torcer por dois clubes em detrimento de todos os demais.
Pelo que se conclui que tais contratos podem até não ser ilegais, mas não basta só não serem, é preciso que não pareçam.