Como Jardel, somos viciados nessa adição.
PLANETA DO FUTEBOL >> O futebol, a "outra espécie de futebol", vai regressar. Como Jardel, somos viciados nessa adição.
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1 - A bola está parada há meses mas não me custa nada falar de futebol. Do verdadeiro. Com a bola a mexer (ela nunca parou, na minha cabeça). Penso no tempo a passar e, na verdade, não me custa mais do que no passado. A diferença é que já não penso da mesma forma sobre o que ainda quero fazer dele. Há sempre o receio de não haver mais mundo, ou, pelo menos, o mundo que conhecemos.
Leio Jardel, tantos anos passados, ir até ao local mais longínquo no tempo mas, quase trocista, sempre tão próximo dentro de nós: o passado.
Pede "desculpa pelo que fiz comigo mesmo". Afirma ser hoje "outra pessoa", não sabe o que quer fazer e por isso fala de fazer tantas coisas. Caça-talentos, treinador de avançados, "tirei curso de treinador mas não me vejo como tal". Não é indecisão nem preguiça de fazer algo. É antes o corpo, a existência, a pedir tréguas a quem recupera de tantos anos da angústia da pressão, dos sucessos e insucessos (esses dois maiores "impostores", como disse Kipling), do stress que enjaulou cada golo.
2 - O futebol, a "outra espécie de futebol", vai regressar. Como Jardel, somos viciados nessa adição. Não duvido que, ao princípio, tudo irá provocar uma sensação estranha, por ser diferente do que alguma vez vivemos. Vejo as condições que se terão de seguir nos estádios e sinto que entraremos neles como no tubo de ensaio de um laboratório.
Atraiu-me a entrevista com Jardel não porque tivesse dito algo novo. Atraiu-me porque me identifico (e o tempo que vivemos) com ela. Entre os golos, drogas, auge, depressão e a busca da nova vida está, no fundo, tudo o que sentimos em 90 minutos de um jogo. Podem apenas variar as origens das coisas.
3 - Jardel foi, ao tempo, o ponta-de-lança ideal em Portugal para uma equipa grande de ataque continuado, com bons extremos de cruzamentos precisos ou segundos avançados de passe, desde Capucho e Drulovic a João Pinto e Pedro Barbosa. Fazia golos uns atrás dos outros mas a seleção, porém, nunca o viu com os mesmos olhos. Quando o Brasil veio jogar um particular a Portugal, não resistiu e foi ao estágio falar com Scolari. Estava lá e lembro-me de o ver sair cabisbaixo do hotel. Soltou só algumas palavras, dava tudo para ser convocado, mesmo que fosse para o banco. Mas o Brasil era outro jogo. E não foi chamado para o Mundial.
É estranho ter essa imagem dele, a sair do hotel desfeito, acima de tantas de glória que existiram de quem era então o melhor goleador na Europa. A razão é por ter, nesse instante, visto a fragilidade de um momento tão forte. O futebol tem, ao mesmo tempo, essa força e fragilidade e elas vêm, espantosamente, uma da outra.
As contradições do tempo presente através do "síndroma-Jardel": a fragilidade (ou a força) dos momentos mais fortes (ou mais frágeis)
Criatividade disciplinada
Talvez seja por sentir que o tempo parou que tenha tanta vontade de comparar épocas. Temos hoje mais ou menos consciência do que nos rodeia? Eu acho que temos... excessivamente mais, o que turva a sua visão e avaliação. Leva a equívocos e exageros. Falamos da criatividade e pouco fazemos para a estimular. O receio leva para outra realidade. As regras, as normas e rotinas surgem cada vez mais cedo e em todas as dimensões da vida. Na infância, na luta adulta, no futebol. São um constante estreitar de caminhos.
Estou a escrever a apanhar o sol e o meu cão dorme no chão (na relva, claro). Não sei porquê, veio-me à memória um concerto em que estive, perto do palco, da Tina Turner e de como, a certo ponto, com a multidão a ir contra as grades que nos separavam do palco, ela pedia para recuarmos ("move back, move back"). Era 1990 e eu um miúdo que se achava adulto. Hoje penso que, metaforicamente, para avançar na segurança também temos de dar... um passo atrás. Na vida como no futebol. Conseguir ser disciplinado e soltar a criatividade ao mesmo tempo: uma "skill" impossível?