PASSE DE LETRA - Nos estádios vazios, os gritos dos jogadores tornaram-se um elemento do jogo e os árbitros terão que aprender a lidar com isso.
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1 Vivem-se tempos de uma tristeza encrustada no quotidiano. As notícias bombardeiam-nos com estatísticas de mortes, infeções, colapsos dos hospitais. As nossas crianças estão em casa, confinadas, longe da alegria contagiante dos recreios das escolas.
Recusamos, com uma nova normalidade, o aperto de mão de um amigo, o abraço de um camarada ou o beijo de um pai. Desconhecemos sorrisos, escondidos em máscaras da várias cores e feitios.
Os países digladiam-se, com as vacinas a serem o objeto da "realpolitik", e os nossos políticos usam o medo da pandemia como estratégia de combate e conquista de poder, numa espécie de anti-jogo a merecer um cartão vermelho. Vivemos no "Longo Inverno" de George R.R. Martin, ou numa "Era de Trevas", de Tolkien, só que o inimigo é microscópico, subtil, com estranhas variantes de nomenclaturas georreferenciadas, destinadas a inculcar o medo. A vida, por isso, segue triste e com a angústia da incerteza. São poucas as coisas que nos animam.
Um amigo meu, adepto, conhecedor de futebol e "braguista" de sete costados, confidenciava-me, antes do jogo de Santa Clara, entre queixumes e notícias da pandemia: "Ainda bem que o Braga joga de 3 em 3 dias; parece-me que, nos dias de jogo, as coisas nem estão assim tão más". E é verdade. O futebol tem esse poder, de ser um espaço neutro, fora do contexto (vários filmes e livros falam disso, principalmente em contexto de guerra). Por isso, ao ouvir Carlos Carvalhal, no final do jogo de sexta-feira passada, com a angústia temperada por um orgulho mais que justificado, a enumerar os riscos e as dificuldades óbvias, para o treinador para os jogadores, desta sucessão vertiginosa de jogos de altíssima exigência competitiva, não posso deixar de pensar que é uma verdadeira delícia ser adepto deste SC Braga. Ter a sorte de, em cada três dias, poder "escapar" à nova normalidade pandémica e mergulhar na neutralidade de um bom jogo de futebol. Daí que Carlos Carvalhal pode ter a certeza de que, para muitos milhares de adeptos como eu, deste SC Braga guerreiro, resiliente e combativo, cada jogo é como que um momento fora do tempo em que vivemos. Vale, por isso, a pena o risco e todos nós estamos muito orgulhosos da nossa equipa.
2 Tenho notado que a circunstância dos estados vazios ter alterado, por completo, a acústica dos jogos tem tido alguma influência na forma como os árbitros interpretam o jogo. Comecei a reparar após a marcação da falta (que não foi falta nenhuma) de Al-Musrati sobre Palhinha que deu o único golo do Sporting na final da Taça da Liga. Palhinha proferiu um grito (que tomou conta da acústica do estádio) que funcionou, no cérebro do árbitro, como uma espécie de reflexo condicionado que o levou a assinalar a falta. No jogo de sexta-feira, na Pedreira, pude confirmar: se o grito do jogador fosse alto, a ecoar, de forma bem audível, pelas reflexões acústicas do estádio, a falta era assinalada. Nos estádios vazios, os gritos dos jogadores tornaram-se um elemento do jogo e os árbitros terão que aprender a lidar com isso.