PASSE DE LETRA - Um artigo de opinião de Miguel Pedro.
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Sabemos que a nossa sensação de segurança e pertença, enquanto sociedade, depende muito de mantermos estável o nosso sistema coletivo de crenças.
Chamamos a isso "a ordem natural das coisas": mesmo que muitos fenómenos não sejam "naturais", no sentido de não pertencerem à natureza, é seguro para nós (para a nossa estabilidade enquanto comunidade) que os entendamos como tal. Por exemplo, o mar e as montanhas são naturais, pertencem à natureza; a propriedade privada não é natural nesse sentido, mas para nós faz parte da "ordem natural das coisas", do nosso sistema de crenças coletivo, pois a maioria não consegue pensar uma sociedade sem ela.
Ao longo da história, muitos pensadores ficaram conhecidos por propor uma rutura profunda nos nossos sistemas de crenças: Galileu, Darwin, Marx, Kant, Wittgenstein ou Alan Turing são disso exemplos, entre muitas dezenas de outros, e sofreram na pele a sua ousadia, atacados pelos paladinos que sempre quiseram conservar as coisas como elas sempre foram. Este sistema de crenças existe e regula todas as atividades humanas e o futebol não é exceção. No futebol português, a existência dos três grandes é uma crença fundante do nosso futebol: a ideia de que SCP, FCP e SLB, por terem mais dinheiro, mais adeptos e mais cobertura mediática, têm que estar nos três primeiros lugares do campeonato.
É essa a "ordem natural das coisas" do futebol português. Alterar isso será perigoso e pode induzir instabilidade. O SC Braga, que tem tentado desafiar esta crença fundamental e desestabilizar o nosso futebol, teve que ser posto no seu devido lugar, que é do quarto lugar para baixo. João Pinheiro foi escolhido como o paladino da ordem estabelecida, e sacrificou a sua imagem e a sua honorabilidade para assegurar que a "ordem natural das coisas" se mantém mais um ano. No jogo contra o Benfica, mostrou toda a sua competência: primeiro, não descansou enquanto não assegurou que o SLB tivesse o jogo na mão, entre "ralhetes" ao Carvalhal, penálti surreal que acabou por não o ser e a expulsão de Fransérgio que ficará nos anais da história dos fretes descarados; depois de o jogo estar devidamente controlado para a equipa que tinha mesmo que vencer o jogo, fez uma arbitragem normal.
Com este seu sacrifício, João Pinheiro mostrou porque é um dos melhores árbitros portugueses e porque podemos todos contar com ele para assegurar que a "ordem natural das coisas" do futebol português não é ameaçada por um qualquer clube com pretensões revolucionárias. João Pinheiro tem cumprido a sua missão, de forma estoica e competente, sempre que, este ano, arbitrou ou foi VAR em jogos do Braga, impedindo que este clube tenha pretensões de alterar "a ordem natural das coisas" do nosso futebol. Estou certo, por isso, que o CA lhe dará, no final, a nota que ele merece.