FOLHA SECA - Opinião de Carlos Tê
Corpo do artigo
Quando se fizer o rescaldo da nossa presença neste Europeu, espero que fique bem mais do que o gesto de Ronaldo ao afastar garrafas de Cola-Cola para dar visibilidade à água, imitado por Pogba e depois por Locatelli, um acto pífio de rebeldia para animar as conferências de imprensa, lugares onde não acontece nada.
Os patrocinadores é que não acharam piada e exigiram à UEFA que explicasse aos rebeldes que o Europeu é um negócio e não uma concentração de escuteiros.
O caso podia ser aproveitado para discutir o tipo de patrocínios que o futebol deve acolher. Se a presença da Coca-Cola e da Heineken é inócua e natural, o mesmo não acontece com as apostas Online, que começam a emergir como tábuas de salvação dos clubes e das Ligas.
Parece que a marca BWin vai substituir a NOS no patrocínio do campeonato português. A penúria provocada pelo Covid-19 foi devastadora para toda a gente e até o Estado deu aval a uma raspadinha para subsidiar o património. Mas deverá o futebol vender a alma ao diabo desde que ele se chegue à frente? O jogo é uma dependência e o seu volume duplicou com a pandemia. Se a BWin patrocina hoje o futebol, porque não a Tabaqueira ou o Cutty Sark amanhã?
Em Espanha, há um braço de ferro entre o governo e os clubes que contestam a limitação da publicidade ao jogo, incluindo a proibição das casas de apostas nas camisolas.
Tirando a vírgula mediática de Ronaldo e o drama de Eriksen, o Europeu tem acompanhado o regresso à vida. Só durante a segunda guerra mundial a pausa dos campeonatos foi maior do que a imposta pelo vírus. De Glasgow a Londres no Atlântico norte, a Baku, no mar Cáspio, passando por São Petersburgo no Báltico, distam mais de 5 mil quilómetros, o que torna a organização do evento um desafio logístico, tendo em conta as restrições ainda em vigor.
A UEFA acertou ao impor um mínimo de espectadores nos estádios como condição de acolhimento dos jogos. Devolvendo gente às bancadas, o futebol toma a dianteira no recobro duma Europa próspera e pacífica como nunca na sua História, mas severamente ferida pelo vírus.
Pode-se ver o Europeu como uma montra comprada por patrocinadores à custa dum jorro de futebol que não poupa atletas levando-os ao desgaste máximo; ou pode-se ver um manifesto de livre circulação e de celebração do território da Europa. Ao celebrar a vastidão da sua casa natural, o futebol celebra-se como factor de (re)aproximação dos povos no momento mais difícil que muitas gerações viveram na sua vida.
Na sexta-feira, vi um dos melhores jogos da prova até à data. Escócia e Inglaterra personificaram as dúvidas políticas da Europa: um saiu da União, o outro quer entrar. Ambos estão ligados por laços indissolúveis. Onde o ideal de federação de estados europeus falha, triunfa o futebol, mesmo sem golos.
Foi pena o cilindro alemão demolir Portugal, mas pode ter o mérito de nos fazer descer à terra. Fernando Santos tem que repensar o estatuto de jogadores que só defendem com os olhos. O Europeu exige mais do que estatutos.