Argélia: o futebol de calcanhar
PLANETA FUTEBOL - A crónica de domingo assinada por Luís Freitas Lobo
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1 - No princípio era um toque de calcanhar. Esta será a melhor forma de identificar o futebol argelino. É, por outras palavras, dizer Madjer, o símbolo máximo da arte do Magrebe conquistando a Europa, com o FC Porto, em Viena de 87. A história da Argélia encantada com a bola nos pés já começara, porém, antes.
As gerações revolucionárias argelinas: 1982-2020
Para os religiosos dos Mundiais, esse início também já tinha Madjer, numa bela seleção que, em 82, com Belloumi a gerir a orquestra a meio-campo, vencera, para espanto de todos, a poderosa RFA. Mais atrás, a história do futebol argelino tinha, nos anos 60, a história incrível do revolucionário Mekhloufi (ver abaixo) e, nos anos 70/80, o feiticeiro Dahleb e suas fintas na relva do Parque dos Príncipes.
A dinastia de artistas do Magrebe sofreria uma quebra no início do milénio, mas, revivalista, este estilo chamado de "Brasil de África", ressurge agora numa série de jogadores que, 29 anos depois da conquista de 90, voltou a sagrar-se campeão africano.
2 - Os heróis agora são outros e, como símbolo, um jogador que também reflete os sinais dos tempos. Continua a arte do drible que, na raiz, Dahleb chamava de provocação "é dar uma falsa pista ao adversário. Arrastá-lo para as alas e, de repente, sair para o meio!". Nesse jogo de simulação e engano, entra agora com a maior velocidade (e menos toque dengoso) típica do futebol moderno, o pé esquerdo de Mahrez, já na elite do futebol europeu, do Leicester ao Manchester City. É uma "arte mais intensa" mas, na seleção argelina vencedora da CAN 2019, existem outros profetas de bom futebol.
Não existe um pensador como Belloumi mas existe a rotação técnica e táctica de Bennacer, um médio, ainda a crescer (22 anos), invasor de espaços, com visão de jogo, passe e remate. Também nas alas, as diagonais de Ounas e Belaili, e, como n.º 9 caça-golos, Bounedjah, que, há vários anos, faz fortuna no Catar (no Al-Sadd) e nunca quis entrar na aventura europeia. A Argélia voltou a ter um grupo de jogadores que, cruzando várias gerações, renovou o sonho de todo um país louco por futebol.
Em 1962, com a independência da Argélia, a equipa dissolveu-se e passou a ser a verdadeira seleção nacional
3 - Podiam, porém, ser mais as estrelas no seu firmamento. Podia ter, por exemplo, um craque como Nabil Fekir que, como muitos talentos de segundas gerações, já nasceu na França, e assim podem optar entre jogar pela seleção argelina ou gaulesa. Muitos ficam na dúvida e arrastam a decisão até ao limite.
Fekir chegou a ser convocado pela Argélia para um jogo particular contra o Catar. Aceitou mas bastou um telefonema do selecionador francês Deschamps para o fazer recuar e não ir, num gesto muito criticado..
As razões eram óbvias: foi a Federação de futebol da Argélia que, em 2003, levou a FIFA a criar um novo regulamento no qual os jogadores que só tivessem representado uma seleção nas camadas jovens, poderiam, a nível sénior, optar por outra da sua origens. O primeiro caso que despoletou, depois, muitos outros iguais por todo o mundo foi de Anthar Yahia que, como muitos miúdos argelinos (de Feghouli a Brahimi), tinha jogado nas seleções jovens francesas.
Outros, como Zidane, Benzema ou Mbappé já pertencem a outra casta e a opção nem se colocou, mas aqueles sem essa dimensão estratosférica, como Cherki, Aouar ou Adli, aproveitam agora para ingressar na nova geração da bela seleção argelina 2020.
4 - Politicamente, a Argélia tornou-se independente da França em 1962 mas, futebolisticamente, essa colonização de segundas e terceiras gerações continua a prender muitos jogadores que, naturalmente, hesitam até ao limite na escolha de por qual seleção jogar (seduzidos pela hipótese francesa de maior impacto mundial). O ultimo caso, do avançado Delort, que adiou a decisão até aos 28 anos, é a melhor prova. Só com mais exemplos intemporais de sucesso, de Madjer a Mahrez, é que a independência do futebol-arte da Argélia será totalmente real!
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Qual a estrela argelina mais revolucionária de sempre?
Em finais dos anos 50, a guerra da Argélia atinge o auge e, em, 58, muitos dos melhores jogadores argelinos a jogar na Liga francesa fogem para se unirem, em Tunes, ao exército da Frente de Libertação Nacional, já como Governo provisório da República argelina na clandestinidade.
Nesse cenário, formam a primeira seleção nacional da Argélia. Na frente do movimento estava Rachid Mekhloufi, então um médio famoso com uma técnica sublime que brilhava no St. Étienne. No total, foram 32 futebolistas no exílio. A força simbólica que eles, sem jogarem em nenhum clube, tinham para a causa independentista era enorme.
Madjer é, mundialmente, o símbolo máximo do futebol da Argélia
Não reconhecida pela FIFA, a equipa tinha dificuldade em organizar jogos. Mesmo assim, entre 58 e 62, disputou 91 partidas, com grandes exibições. Golearam a Jugoslávia, 6-1, venceram a Checoslováquia, 2-1, e Bulgária, 3-0, empatando com Hungria, 2-2, em 1954, no tempo da sua equipa de ouro, e URSS, 2-2.
Em 1962, com a independência da Argélia, a equipa dissolveu-se e passou a ser a verdadeira seleção nacional de futebol da Argélia, já reconhecida pela FIFA, sendo formada por muitos desses combatentes da FNL. Livre, Mekhloufi regressaria, em glória, ao St. Etienne e ganharia mais três campeonatos. Por toda a Argélia, agora com 83 anos, continua ainda hoje a ser venerado como um grande herói futebolístico da independência. Brutal.
Quem me fez (faz) sonhar?
Maestro Belloumi
Madjer é, mundialmente, o símbolo máximo do futebol da Argélia, mas quem viu jogar a maravilhosa seleção de 82, ficou primeiro deslumbrado pela classe de um maestro ofensivo-arquiteto de jogo: Lakhdar Belloumi. Ele como que fazia parar o jogo quando pegava na bola.
Chamaram-lhe o "Emir de Mascara", por ser a sua terra de nascimento e o clube por onde sempre quis jogar porque, como disse, "a minha carreira foi toda feita com o coração". Por isso, nunca jogaria na Europa e só aos 41 anos, em 98/99, no MC Oran, pendurou as chuteiras. Mito!