André Girão: a modéstia fica-te bem, mas és o melhor do mundo
Recordo-me dum Mundial ganho no Porto em 1968, no Palácio de Cristal, que arrancou a cidade à sua pacatez e espalhou uma nota de festejo sanjoanino.
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Sou dos que não sabiam um nome dos jogadores da selecção nacional de hóquei em patins que ganhou o Mundial na Catalunha. Toda a equipa se deu meritoriamente a conhecer, mas André Girão merece um destaque especial. Quando as coisas pareciam irremediáveis, foi ele que virou a maré da sorte para Portugal.
Longe vai o tempo em que o hóquei era muito popular entre nós. Na minha juventude, nomes como Adrião, Leonel, Livramento pediam meças aos nomes do futebol (até me lembro de Carbonell, um lendário hoquista espanhol que nos deu alguns dissabores). O mesmo acontecia com o ciclismo: todos os miúdos queriam ser o Alves Barbosa, o Joaquim Leão, o Joaquim Agostinho. Mas o hóquei e o ciclismo perderam fulgor, enquanto a popularidade do futebol não cessou de aumentar. Talvez a importância que o hóquei tinha então se devesse ao facto de ser a única modalidade em que ganhávamos alguma coisa. Só ele derramava sobre nós uma alegria regular que redimia a derrota colectiva que nos enlutava: a falta de liberdade para crescer como nação. Recordo-me dum Mundial ganho no Porto em 1968, no Palácio de Cristal, que arrancou a cidade à sua pacatez e espalhou uma nota de festejo sanjoanino. E a verdade é que, quando as coisas mudaram, o desporto português, sobretudo o atletismo, tanto masculino como feminino, alcandorou o país a alturas a que só o hóquei tinha conseguido.
A dificuldade de vencer no tempo regulamentar fez crescer a fé da equipa no seu guarda-redes - ele estava lá
André Girão passa a figurar ao lado de Vítor Domingos e Ramalhete, guardiões ligados à idade dourada do hóquei. Esta selecção pode não ter os artistas desses tempos, capazes de desequilibrar jogos e assinar ainda notas de malabarismo, mas teve o suficiente para ser campeã. E, por ser sofrido, o seu feito é mais admirável. A falta de argumentos das gerações anteriores foi compensada com arreganho e espírito de combate, o que implica reconhecer a superioridade dos opositores em certos momentos e saber esperar para lhes dar a última estocada, como aconteceu no prolongamento contra a Espanha e no desempate por penáltis contra Itália e Argentina. A Itália foi melhor nos "quartos", tal como a Argentina na final, mas aí despontou Girão, coberto por um manto afortunado que vedou a baliza. A dificuldade de vencer no tempo regulamentar fez crescer a fé da equipa no seu guarda-redes - ele estava lá, possuído por uma força qualquer. Essa percepção passou para os adversários sob a forma dum vulto intimidante e intransponível. Sempre que iam marcar um penálti, lia-se-lhes no rosto a descrença. Enfrentavam uma entidade que era inútil desafiar. Girão tornava-se maior do que eles e entrava no domínio do sortilégio. Parafraseando Churchill, quase se poderia dizer: nunca tantos deveram tanto a um condestável de stick na mão agachado numa baliza. À chegada, perguntaram-lhe se era o melhor guarda-redes do mundo e ele respondeu que não: os melhores na sua posição eram os dois do Barcelona. Ok, Girão, a humildade fica-te bem, mas tu foste o sustentáculo dos campeões do mundo, por isso, para nós, és o melhor do mundo.