Afinal era cedo para cantar vitória
Que o episódio tenha ocorrido entre um alvará de competição e o clube português mais titulado, é uma curiosidade. A culpa não será de ninguém. Sobrará para os regulamentos, obviamente.
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O pessoal que não gosta de futebol tem razão quando diz não entender a sua popularidade. Eu também não entendo, mas, das teorias que a tentam explicar, há uma intrigante: o futebol concentra aptidões que elevaram a Humanidade ao topo da pirâmide evolutiva, destreza, técnica, cálculo, entreajuda. Vence o mais forte, o mais expedito, mas também o mais solidário e o mais organizado.
No futebol, o invertebrado não singra, mas ter jeito não chega, embora seja fundamental. O jeitoso mete o pé à bola e ela amansa-se com truques que se treinam, como a recepção orientada, esse 2 em 1 que lembra em música um acorde de passagem
Cada jogo recria esta ascensão com regras e bonificações. Ganhar é sobreviver, mas perder não é morrer porque a redenção é possível na jornada seguinte, na época seguinte. Quando a sociedade anda mais sã, a melhor cidadania produz justiça social, mas quando os valores recuam, é cada um por si, o crápula mata e esfola para enriquecer, o relativista relativiza, o videirinho adapta-se ao piso, o fraco tenta não cair na valeta e alcançar o meio da tabela.
No futebol, o invertebrado não singra, mas ter jeito não chega, embora seja fundamental. O jeitoso mete o pé à bola e ela amansa-se com truques que se treinam, como a recepção orientada, esse 2 em 1 que lembra em música um acorde de passagem. Aliás, futebol e música pop são ilusões imbatíveis de proximidade, embora partilhem uma cruel lei de bases: o dom é raro e inegociável. Põe-se um filho na escolinha mas não sai de lá um craque. Estuda-se no conservatório mas não se aprende a fazer uma canção. A escola ajuda quem tem jeito, mas não o ensina.
No início do século XX, o estádio era já o chão onde ricos e pobres se batiam igualitariamente. Mas o futebol só disparou no pós-guerra, com a ampliação da faixa do lazer, a semana inglesa, as férias, o direito ao repouso reconhecido na Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948. O desporto preencheu o espaço libertado pela luta de subsistência, um espaço de longas jornas em condições que pouco diferiam da revolução industrial. O futebol distanciou-se das outras modalidades ao ar livre e profissionalizou-se, mas foi a reconstrução europeia que o fez dar o grande salto ao criar provas internacionais entre clubes, dez anos depois do fim da segunda guerra, reaproximando os povos combalidos.
Por cá, um alerta sanitário foi encarado com sonsice corporativa e administrativa: uma equipa foi a jogo com nove jogadores, sem técnicos no banco, sem o seu corpo clínico
Segundo a tal teoria, o futebol ritualiza ludicamente a evolução humana purgando a lama do caminho. Mal salta a bola, o estádio é varrido por uma dignidade arcaica, um tropel vindo do fundo do tempo. A lição a tirar é sempre a mesma: há vitória e derrota para todos, mas só a presença do público lhe confere verdade. Ora, quando se pensava que as vacinas tinham resolvido de vez essa questão, eis que o Covid contra-ataca pela calada do outono repondo restrições fronteiriças e esvaziando bancadas alemãs e holandesas. Era cedo para se cantar vitória.
Por cá, um alerta sanitário foi encarado com sonsice corporativa e administrativa: uma equipa foi a jogo com nove jogadores, sem técnicos no banco, sem o seu corpo clínico. Que o episódio tenha ocorrido entre um alvará de competição e o clube português mais titulado, é uma curiosidade. A culpa não será de ninguém. Sobrará para os regulamentos, obviamente.