PLANETA DO FUTEBOL - Um artigo de opinião de Luís Freitas Lobo.
Corpo do artigo
1 Tenho três cães a dormir pela casa, onde lhes apetece, dois no sofá, um no chão. Tento concentrar-me em livros que ficam para trás. Crio rotinas impossíveis de trabalho, ideias de coisas para desenvolver que rapidamente percebo serem quimeras editoriais. Escrevo, muito. Vejo futebol. É bom ter tempo para atualizar a base de dados vendo todas as ligas sul-americanas, da Colômbia ao Equador, analisando principais equipas e pesquisando jogadores/talentos.
As janelas e as portas do jardim sempre abertas. Entra o sol, o frio e o vazio. Ignoro redes sociais, uma praga. Tenho insónias muitas vezes porque fico com os sonos trocados. Em vez de ficar, como fico por fora, mais devagar, tudo dentro de mim acelera. Ansiedade. Sei bem ao que devo dedicar atenção mas, mas... quase tudo que começo não acabo. É natural, penso. A quarentena pôs a vida em suspenso. Às vezes sinto-me a mais aqui, é inevitável.
2 Não me sinto como uma personagem de algo que há poucos dias só imaginava num filme. A cada notícia que leio sobre o mundo que se vai formando em torno da pandemia, sinto que é a realidade. E vai ser cada vez mais.
O futebol é só uma parte de um imenso universo que se move por entre os escombros e a perspetiva deles. Bastaram uma/duas semanas de paragem para se falar em reduções, cortes, falências. Essa rapidez de análise e ação tem apenas um nome: oportunismo.
Criou-se o cenário ideal para justificar medidas que, na esmagadora maioria, têm como base outro vírus: gestão desportivo-financeira incompetente, danosa e irresponsável. No futebol, como noutros sectores de atividade.
Quando se parte para uma época em que se tem um orçamento projetado nessa dimensão temporal, onde as receitas e despesas têm ambas variáveis muito reduzidas ou balizadas nas circunstâncias, o futebol (que já não depende das bilheteiras de jogos, tirando os escassos casos do mês do pequeno a receber em casa um grande, e já tem lugares vendidos no estádio e quase todos já antecipam receitas de televisão) é das últimas atividades em que essas variáveis podem ter um impacto tal de imediato, mal passaram só uma ou duas semanas.
3 Tudo se prepara o mundo novo que virá (e que já se desenha no dia a dia). Um mundo onde, lamento, não acredito em que nada, no plano da dimensão humana, será melhor. Pelo contrário. As serpentes tendem a pôr os ovos sempre no mesmo sítio. Nem sequer é "quase sempre". Os "gatos gordos" são seres superiores num (in)sustentável mundo novo em cima do velho. Para um pássaro, um avião é hoje uma exceção.
Eu sou assim
bbb Recordar por estes dias como éramos em 1984 é uma admirável viagem no tempo. A ideia que temos sempre é que o mundo era demasiado velho quando nós éramos novos. Nunca achei que a saudade fosse boa companhia de viagem para a vida, mas às vezes faz bem olhar para trás. Sentir o lado romântico do futebol, faltar às aulas para ver o RFA-Portugal a meio da tarde. Deixar até de ir ter com a miúda do 9.º ano por quem suspirava porque existiam coisas mais importantes. Por aqui se vê a força do futebol. Ganhámos 0-0 (assim mesmo, não é engano, nesse tempo ver a seleção pela primeira vez num grande torneio e não perder com os gigantes alemães era uma vitória). Até criámos uma grande oportunidade. Merecíamos ganhar, sem dúvida. Nunca mais vi a miúda, mas pouco importa. Tinha visto o Chalana a picar a bola por cima do Briguel, o Jaime Pacheco a obrigar o Schumacher a grande defesa e o Jordão quase a desviar à boca da baliza. Isto fica para sempre. Como, para sempre, esta será a minha seleção. Perdemos no fim? Que importa? Eu ganhei e muito. Ganhei sensações únicas na vida até hoje.