PASSE DE LETRA - A opinião de Miguel Pedro, aos domingos n'O JOGO.
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Se hoje fosse vivo, Guy Debord encontraria na criação e extinção, em apenas dois dias, da Superliga Europeia a confirmação da sua tese sobre a "sociedade do espetáculo": o espetáculo do hipercapitalismo do século XXI apropria-se de tudo, até mesmo do desporto.
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O desporto, outrora sinónimo de valores olímpicos e de ideais heroicos sobre sonhos impossíveis, tornou-se uma mercadoria, transformando-se em pura especulação cínica. Os "grandes-grandes" do futebol europeu, meia dúzia de clubes preocupados com os seus milhares de milhões de euros, fundaram a Superliga numa narrativa de solidariedade capitalista: a ideia de que, se estes ganharem muitos milhões, o futebol está salvo, pois algum deste dinheiro, ainda que pouco, irá para os milhares de clubes mais pobres, os pequenos.
O topo da pirâmide do futebol irá cuidar paternalisticamente da sua base, desde que deixem a "mão invisível" do mercado funcionar. Foi esta a mensagem de Florentino Perez e de Andrea Agnelli. Este hipercapitalismo está, na verdade, ligado a uma revolução em curso, a do hiperindividualismo, como bem ensina Gilles Lipovetsky, que tem como premissa a cada vez maior exigência de desregulação económica e social em prol de "liberdade de escolha": é esta a principal mensagem que os muito-ricos têm vendido e o resto do mundo tem comprado. A reação foi estrondosa e em dois dias esta primeira tentativa dos "grandes-grandes" tomarem conta do resto do dinheiro do futebol, gorou-se.
Solidariedade, sim, mas só quando dá jeito: parece ser este o princípio orientador dos "grandes-pequenos" do futebol português
Em Portugal, foi curiosa a reação dos nossos "grandes": uma vez que o tamanho, no capitalismo, se mede em milhões de euros, estes concluíram que, afinal, não eram assim tão grandes e reagiram "à pequeno". Argumentaram com os valores do mérito desportivo, da verdade desportiva, da solidariedade e da regulamentação coletiva da UEFA. São, no entanto, os mesmos que "furaram" a centralização das receitas televisivas, que fazem "aquisições" hostis de treinadores e jogadores a meio de uma época desportiva, que obrigaram os restantes clubes a criar o G15 para tentar defender os clubes com menos possibilidades económicas e garantir um mínimo de competitividade no futebol. Solidariedade, sim, mas só quando nos dá jeito: parece ser este o princípio orientador dos "grandes-pequenos" do futebol português (grandes em Portugal e pequenos na Europa).
Os verdadeiros vencedores desta batalha de dois dias foram os outros clubes todos, os pequenos que, unidos pelo ideal dos adeptos de todos os clubes sem exceção, se tornaram grandes. Os clubes que, com pouco, almejam a muito e que mantêm vivos os ideais do desporto e os sonhos das conquistas improváveis. Mais do que o destino, a estes clubes interessa o trajeto, o percurso. Este é o ideal do próprio adepto, que, independentemente do clube a que pertence, ama o desporto como tal. São estes clubes "pequenos-grandes" que se deverão manter atentos, pois esta foi só a primeira tentativa, o primeiro golpe dos "grandes-grandes". Outros se seguirão, por certo. Por isso, para todos os que gostam do futebol, um só grito se impõe: "adeptos de todos o mundo, uni-vos!".fe