PASSE DE LETRA - A opinião de Miguel Pedro, aos domingos n'O JOGO.
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Num episódio da mítica série televisiva Monty Python"s Flying Circus (em Portugal recebeu a tradução de "Os Malucos do Circo"), os célebres comediantes encenavam uma aula de espionagem onde os aprendizes de assassinos treinavam o uso de figuras de estilo literárias como armas mortíferas.
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O uso do pleonasmo, da metonímia, da metáfora ou da ironia tinham variadíssimas utilizações no combate às várias características da alma humana. Lembro-me que a ironia era, para os Pythons, a arma infalível contra a estupidez. Vem isto a propósito de um post numa rede social que, após a vitória do SC Braga sobre o Benfica, dizia só "O Braga é o Paços de Ferreira B", aludindo à derrota em Paços de Ferreira que foi seguida da referida vitória sobre o clube da Luz. Este post é o melhor statement contra a estupidez de quem continua a ver os clubes ditos "pequenos" como instrumentais ou subservientes relativamente aos três habituais "grandes", isto é, de que os muitos clubes "pequenos" só existem para servir os três habituais clubes do costume. A estupidez subsiste: ainda esta semana, um conhecido comentador ligado ao Sporting referia, antes da meia-final, que preferia enfrentar na final o original (entenda-se, o Benfica) do que a fotocópia (que seria o Braga).
Esta ideia recorda-me, com as devidas adaptações, o discurso de alguns políticos que dividem a nação entre cidadãos de bem e os outros (os que não serão de bem).
A estupidez subsiste: um comentador ligado ao Sporting disse que preferia enfrentar o original (Benfica) à fotocópia (Braga)
Não deixa de ser curioso que o jogo contra o Benfica ocorreu no mesmo dia em que o anterior inquilino da Casa Branca finalmente a deixou. Trump foi o espelho mais visível da política da divisão, do ódio, da trafulhice e da mentira. Tentou - e conseguiu, em parte - enfraquecer as instituições democráticas ancestrais dos Estados Unidos. Nos seus discursos, ao longo do seu deplorável mandato, esteve sempre subjacente a ideia de que existem cidadãos que, por uma qualquer razão (raça, opinião política, religião ou orientação sexual), merecem mais do que outros.
É a ideia de que os cidadãos de bem (seja lá o que isso for) devem ocupar os lugares de poder e governar só para os demais cidadãos de bem. Esta ideia, que alimentou a imaginação de escritores para criarem as suas distopias literárias sobre sociedades onde ninguém quereria viver (a não ser os tais cidadãos de bem), desde Orwell, Margaret Atwood, Huxley, Burgess ou Ray Bradbury (entre tantos outros), está mais perto de se tornar real, de forma assustadora. Um dos últimos atos de Trump antes de sair do seu poleiro foi perdoar Steve Bannon (que estava preso por uma monumental burla financeira), o ideólogo por detrás de toda a estratégia de derrube das democracias ocidentais através da mentira, da fraude, da divisão e do ódio, e implementação de um protofascismo, de que é um confesso admirador. É um verdadeiro "cidadão de bem" (ironia, claro). É mesmo isto que queremos para Portugal?