A encrenca do português Rafael Ramos no Brasileirão
Talvez Edenilson tenha ouvido mal, ou talvez Ramos tenha dito o que não queria. O perigo das palavras é revelarem às vezes o que desconhecemos sobre nós mesmos
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Acabou bem a encrenca do jogador português Rafael Ramos no Brasil: o tribunal deu como inconclusiva a acusação de racismo que pendia sobre ele. Aconteceu em Porto Alegre, no fim do Internacional-Corinthians jogado em Maio, depois dum lance com Edenilson, capitão do Inter, que acusou Ramos de lhe chamar "macaco".
Para um português, viver no Brasil é como viver no estrangeiro sem sair de casa, um luxo apenas perturbado por rancores que podem surgir quando menos se espera. Sucede que o futebol é a área mais multirracial do país - não por favor dos brancos mas porque o talento negro é impossível de ignora
O português foi detido e libertado sob fiança, atribuindo o caso a um mal-entendido. Vítor Pereira, treinador de Ramos, tentou aligeirar a situação, pois também ele se desentendia às vezes com a língua comum. O brasileiro não retirou a queixa. O Corinthians pediu uma perícia às imagens televisivas, não tendo detectado o fonema M de "macaco", só o C, de "caralho...". O Inter pediu uma contra-perícia, que deu razão a Edenilson. Face ao empate pericial, o inquérito seguiu para o Ministério Público. O advogado de Ramos foi dizendo que "macaco", em Portugal, não tinha a conotação que tem no Brasil, mas o problema da palavra, cá e lá, é dizer o que diz, além de ser o insulto que o negro brasileiro mais ouve nos estádios hispânicos (como agora no recente Atlético de Madrid-Real com Vinícius Jr), às vezes substituído pelos mesmos grunhidos que levaram Marega a abandonar um jogo, cá, num caso despachado com as meias tintas do costume.
Para um português, viver no Brasil é como viver no estrangeiro sem sair de casa, um luxo apenas perturbado por rancores que podem surgir quando menos se espera. Sucede que o futebol é a área mais multirracial do país - não por favor dos brancos mas porque o talento negro é impossível de ignorar. Daí ser útil, para quem lá trabalhe ou vá de visita, não esquecer que foram os seus antepassados que levaram para lá, a ferros, tantos africanos. À era escravocrata sucedeu-se um apartheid em que cada um sabia o seu lugar, a bem ou a mal. Hoje o Brasil tem 54 por cento de negros e mestiços, a que chamam pardos, mas foi preciso Lula impor cotas universitárias para terem uma voz mais qualificada, daí o pavio do "alegadamente" ser agora mais curto.
Apesar de ser o único português a jogar no Brasileirão, Rafael Ramos viu-se metido numa alhada. Talvez Edenilson tenha ouvido mal, ou talvez Ramos tenha dito o que não queria. O perigo das palavras é revelarem às vezes o que desconhecemos sobre nós mesmos. Por isso, para evitar mal-entendidos, convém não desistir de explicar aos jovens que a glória das descobertas andou sempre a par com a vilania e ter noção disso é o que permite encarar o passado sem complexos.
Por coincidência, no dia seguinte a esse jogo, um adolescente americano transmitiu pelo Twitch uma chacina num supermercado, e pediu desculpa a um branco apavorado porque só queria matar pretos - e foram dez. O futebol não tem cor e é um manifesto de vida, mas não está imune ao preconceito racial que teima em latejar nos subterrâneos da sociedade. Darwin demonstrou que descendemos todos da mesma árvore, mas alguns penduram-se num galho superior para melhor exibirem a sua ignorância. E o racismo é o fruto mais triste da ignorância.