A dinastia do estilo: de Schuster a Laudrup
PLANETA FUTEBOL >> Ele via a jogada antes do técnico no banco ou do adepto na bancada. É essa visão única que gera as sucessivas situações de superioridade no jogo. Ontem como para sempre.
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1 - O futebol é uma dinastia em que muitos jogadores parecem ser filhos de outros. Ou seja, parecem ter nascido de dentro dos antecessores. Um exemplo desta sensação estranha tenho, claramente, com dois jogadores. Schuster e Laudrup.
Pode ser um delírio meu de percepção de estilo mas vi Laudrup como uma continuação de Schuster, no sentido de evolução no jogo. Isto é, desde o ter a bola e tocá-la ou passar, até, mantendo-a controlada, avançar com ela comendo metros até à definição. Vou explicar.
Schuster marcou-me porque sendo eu muito miúdo nunca me tinha anda apercebido, em 1980, como alguém podia jogar tão bem sem correr muito ou mostrar grande esforço em fazê-lo. Era quase um estilo anti-alemão mesmo no centro da poderosa seleção alemã (então RFA) que ganhava a toda a gente. Eu gostava da ironia física que era o franzino Littbarski no meio daqueles gigantes estilo-Briguel mas nesse caso ele fintava e corria muito. Schuster, não. Aquilo era nobreza pura, jogando com a personalidade e hierarquia de um veterano quando era ainda o jovem "anjo louro" que estava a aparecer. Tocava e passava a bola, com passes em profundidade como nunca tinha visto antes, e mudava a circulação do jogo, metendo a bola ora para um flanco, ora para o outro, com uma geometria de visão de jogo impecável. Depois, os livres diretos em jeito que marcava. Tudo era especial nele.
2 - Laudrup surgiu mais tarde mas quando o via conduzir a bola invadindo com critério espaços de ruptura nas marcações a meio-campo, via-o como um Schuster em projeção de movimentos mais acelerada. Sentia isso porque, quando recebia a bola, Laudrup tinha a mesma hierarquia de Schuster. Só depois inventava outro conceito de jogo, igualmente inteligente, mas com outra velocidade nos mesmos contornos de estilo.
Nos anos do "Dream Team" de Cruyff, primeira metade dos anos 90, o futebol começou a conhecer a exacerbação do "jogo posicional". Confesso que, vendo a final da Champions de 92, não percebi logo que estava a ver o primeiro esquema com um "falso 9" do futebol moderno. Foi Laudrup que o fez então, mas sem perder o que fazia antes, porque nessa anterior "posição verdadeira" que lhe conhecia, permanecia fiel à diferença quando vinha buscar bola atrás e arrancava com ela.
Nunca vi jogador tão forte no um-para-um zonal a invadir espaços com bola em velocidade de posse. Porque uma coisa é receber a bola em corrida e outra é sair da pressão da marcação com a bola quase parada junto à bota, contra um defesa duro e apoiado nas dobras. Laudrup passava fácil por tudo. A mesma jogada repetia-se, vezes sem fim, sempre que ele pegava na bola e ia embora com ela.
3 - Nunca percebi, na forma fácil, leve e subtil, com que avançava, se ele fintava mesmo os adversários ou se se limitava a passar por eles. Gosto mais de ter na memória e retina a segunda hipótese. Era como se eles não existissem. Bastava uma simulação com o ombro para um lado e saía a jogar com a bola pelo outro, no mesmo metro quadrado. Só com esse gesto, já ganhara vários metros ao adversário e na construção de jogo da equipa em posse vertical. Tudo com uma elegância discreta admirável, sem a génese sul-americana que Cruyff dizia ter-lhe faltado, no sentido de crescer com outros estilos e dificuldades (o que moldaria outra personalidade/carácter no jogo) para ser o melhor jogador do mundo da sua geração.
Há poucos dias, ouvia falar Amor, que jogou nessa lendária equipa, e dizia que o segredo de Laudrup "era que perfilava muito bem o corpo e saía para qualquer dos lados tocando com ambos os pés: tac-tac, direita-esquerda e adeus. Os avançados com finta sempre foram os mais especiais. Laudrup driblava, passava, assistia e marcava."
Ele via a jogada antes do técnico no banco ou do adepto na bancada. É essa visão única que gera as sucessivas situações de superioridade no jogo. Ontem como para sempre.