Para quem viveu o futebol internacional dos anos 80, a Bota de Ouro tinha um nome romeno que aparecia como uma "fábrica de golos" de quem todos desconfiavam. Era o Camataru. O Benfica chegou mesmo a querer contratá-l
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1 - Não tem o estilo elegante, rato ou possante, de quem seduz a baliza, sussurrando-lhe remates como um "goleador D. Juan". É mais um produto da "linha reta" para o golo. Tem sempre as "orelhas em pé" para cada bola que lhe surja à frente, bem metida para ele ou perdida após qualquer ressalto direto. E se o espaço se abrir, a desmarcação tem. desde o arranque na mente, o momento certo do remate. E ele aparece. Ciro Immobile é um protótipo que respeita o n.º 9 mais de choque (ou de busca pelo choque em vez da finta que sabe não ter). A história transalpina está cheia de jogadores destes. De Boninsegna a Vieri. A exceção foi Rossi.
Talvez porque lhe falte tanto essas coisas, não triunfou no Dortmund. A camisola ficou-lhe "demasiado grande" nas exigências da Bundesliga. Tinha saído do Torino, regressou para a Lázio e, numa bela equipa feita por Inzaghi, conquistou a Bota de Ouro de melhor goleador europeu, apontando 36 golos.
Retirando os jogadores de "outro planeta" como Ronaldo (31) e Messi (25), ficou dois golos à frente de Lewandowski (34). Mais para trás, Werner, Haaland, Vardy, Lukaku e, fruto de um coeficiente que atribui menos valor (em pontos) a golos em ligas ditas menos competitivas, Weissmann (30 golos na liga da Áustria, no Wolfsberger) e Nsame (30 na liga suíça, no Young Boys).
2 - Para quem viveu o futebol internacional dos anos 80, a Bota de Ouro tinha um nome romeno que aparecia como uma "fábrica de golos" de quem todos desconfiavam. Era o Camataru. O Benfica chegou mesmo a querer contratá-lo (e ainda fez um jogo particular na inauguração do terceiro anel da velha Luz). O Camataru (jogou o Euro"84) até era um n.º 9 interessante, jogava em largura, era oportuno e ágil fisicamente, mas estava muito longe de ser o craque. O regime de Ceausescu, dizia-se, fazia tudo para adulterar jogos e ele marcar golos para ganhar a Bota de Ouro, mas a verdade é que ele nunca jogou no Steaua Bucareste. Os golos foram sempre marcados no Dínamo e no Universidade Craiova. Até que, em 86/87, quando discutia "golo a golo" o troféu com o austríaco Polster, ele marcou 20 golos (!) nos últimos seis jogos da liga romena (terminando com 44). Ninguém acreditava naquilo e o jornal "L"Équipe", que então atribuía o prémio, suspeitou da manipulação e deu a "Bota" aos 39 golos de Polster (feitos no Áustria de Viena).
Polster era um avançado possante, sem requintes técnicos, mas fisicamente explosivo nos últimos 30 metros, ganhava quase todas as bolas em profundidade (mesmo curta) que lhe metiam à frente. Depois, sabia as suas limitações e remate forte de primeira. Em Espanha, no Sevilha, também fez muitos golos assim. Foi, talvez, a última grande estela austríaca de dimensão mundial antes de a sua seleção cair numa longa crise geracional.
3 - Nesta viagem pela Bota de Ouro, olhando a sua recriação pós-97, os nomes já honram, sem dúvidas, o Olimpo do goleadores. Antes das explosões Messi e Ronaldo (a partir de 2008), gosto de ver o feito de Kevin Phillips que foi o melhor goleador da Europa pelo Sunderland na Premier League (com 30 golos em 99/00). O primeiro Bota de Ouro do séc. XXI unia o velho estilo lutador britânico de correr atrás de todas as bolas com os novos tempos mais continentais que nasciam em Inglaterra de bola na relva e mais passe e desmarcação. Nesse sentido de união de estilos, continuo a guardar especial devoção pelo sueco Henrik Larsson e as suas longas e fartas rastas (tinha origens cabo-verdianas), festejando golos com a língua de fora, eufórico a correr para as bancadas do Celtic Park. Era empolgante vê-lo jogar e tinha, para além do instinto e garra, uma qualidade de movimentos muito inteligente. Depois disso seria, com 35 anos, campeão europeu em 2006 no Barcelona de Ronaldinho. Jogou três Mundiais e nunca descobri se era destro ou canhoto. Ele, provavelmente, também não. A bota era de ouro nos dois pés.
O romance do golo por Immobile, Polster, Larsson e... Camataru!
Durante longos anos, a Bota de Ouro foi refúgio de goleadores de pequenas ligas. Duvida-se de como esses golos eram marcados (veja-se a lenda de Camataru). Por isso, passou a atribuir-se valor diferente aos golos conforme os campeonatos em que se marcava. Os anos 90 marcaram essa rutura. Assim, o maior goleador da história do futebol escocês, Ally McCoist que marcou 34 golos pelo Rangers em 91/92 e 92/92, não teve direito a receber o título. Desolador, mas a situação complicou-se mais quando, nos anos seguintes, o melhor marcador foi Taylor (com 43 golos pelo Porthmadog da Liga de Gales), Avettisyan (39, pelo Homenetmen, na liga da Arménia) e Endeladze (pelo Maergveti, na liga da Arménia, com 40). Não podia ser.
Mesmo com estas regras, nomes grandes como Rush (Liverpool, 32 golos em 83/84, no meio das duas de Gomes), Van Basten (37 no Ajax em 85/86) e Hugo Sanchez (Real Madrid, 89/90, com 38) venceram o troféu.
Neste último, porém, ficou com o mesmo número de golos de Stoichkov, então ainda a jogar no CSKA Sófia. Conta Stoichkov que só não marcou mais golos porque o governo búlgaro o proibiu de fazer nos últimos dos jogos da liga búlgara para não dizerem, como acusavam a Roménia de Mateut (Bota de Ouro com 43 golos em 89) de isso ser prova dum regime corrupto que patrocinava feitos falseados como propaganda.
Erwin Vandenbergh >> Percorrendo toda a lista da Bota de Ouro, desde o início com Eusébio, fixo-me num jogador que me hipnotizava nos anos 80. Ou melhor, era ele e toda a seleção da Bélgica, pela forma como jogavam, fazia o fora de jogo de forma cirúrgica maquiavélica e depois, iam lá à frente, e marcavam por... Vandenbergh. Também marcava no Anderlecht, mas onde ele ganhou a bota dourada foi no Lierse, em 79/80, com 39 golos. Esguio, sempre no limbo do fora de jogo, desmarcava-se e raramente falhava.