Taça e champanhe num parque de estacionamento: assim celebraram os ciclistas na Vuelta
Privados da cerimónia oficial de entrega de prémios – que nunca seria pacífica, pois Matthew Riccitello, da Israel-Premier Tech, teria de vestir a camisola da juventude –, os corredores combinaram um encontro à noite, em Madrid, para fazerem a festa num pódio improvisado.
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Foi no parque de estacionamento de um hotel, Jonas Vingegaard teve direito a taça e o champanhe jorrou em abundância, deixando João Almeida aflito dos olhos e Ivo Oliveira (vencedor por equipas) a rir-se.
Festa cancelada
Manifestantes contra a equipa de Israel invadiram as avenidas de Madrid e a Volta a Espanha teve de anular a etapa final e a cerimónia do pódio. Jonas Vingegaard, João Almeida e Tom Pidcock festejaram no início da 21.ª etapa e nada mais. A corrida parou à entrada de Madrid, palco de confrontos entre manifestantes e polícia, num final triste e inédito.
O grupo de manifestantes que à entrada do circuito de Madrid, e quando faltavam 58 quilómetros para terminarem os 108 da 21.ª etapa da Volta a Espanha, travou alguns ciclistas, só antecipou o inevitável. Uma multidão calculada em 100 mil pessoas invadiu a Gran Vía e obrigou a cancelar a última etapa. A festa de Jonas Vingegaard, João Almeida e Tom Pidcock, os três primeiros de uma corrida conturbada, ficou limitada aos abraços e brindes com champanhe dos primeiros metros.
Na hora do balanço, ficou provado que Jonas Vingegaard é o segundo maior voltista da atualidade, recuperando com um triunfo da derrota no Tour ante Tadej Pogacar e avisando de imediato que pretende vencer o Giro. Mas, para os portugueses, a corrida marcada pelos protestos contra a equipa de Israel teve quase só um nome: João Almeida. Aos 27 anos, o caldense igualou o melhor resultado de sempre de um corredor nacional numa Grande Volta, o segundo lugar de Joaquim Agostinho na Vuelta de 1974, quando tinha 31 anos, provando ser capaz de superar o palmarés da maior glória do ciclismo lusa, apesar de, tal como o homem de Brejenjas, ter de lidar com superestrelas – este enfrentou Merckx, Ocaña e depois Hinault –, Almeida tem Pogacar e Vingegaard a tapar-lhe o sol.
A corrida espanhola acabou por ser um duelo entre os dois únicos verdadeiros candidatos – Tom Pidcock e Jai Hindley travaram outro pelo terceiro lugar –, umas vezes criticado pelo conservadorismo do dinamarquês, que temeu sempre acusar o cansaço do segundo lugar no Tour, outras pelas reduções das etapas geradas pelos protestos pró-Palestina.
Só entediante na aparência, a Vuelta teve os dois da frente a ganharem ou perderem tempo em dez de 20 etapas, sete vezes a favor de Vingegaard, que começou a decidir a corrida em Valdezcaray (ganhou 30 segundos), amealhou no final antecipado de Bilbau (12s) e rematou na Bola del Mundo (32s). Almeida recuperou nos dois contrarrelógios, o individual encurtado de 27 para 12 km, e ao triunfar no Angliru. Poderá queixar-se da falta da equipa em Valdezcaray, onde uma perseguição coletiva apanharia o dinamarquês, e da redução do traçado no “crono” de Valladolid, mas isso nunca anularia o total de 76 segundos de atraso. A UAE Emirates não fez boa figura ao apostar na conquista de (sete) etapas – e ao convocar um Juan Ayuso que não ajuda colegas –, mas o resultado final valida a tática.
Agostinho segundo durante o 25 de Abril
Curioso é encontrar, 51 anos depois, paralelos entre o segundo lugar de Almeida e o de Agostinho. O “Ayuso” deste chamava-se Luis Ocaña, era seu chefe de fila na Bic, correu doente e na 13.ª etapa o português teve de o esperar, perdendo 1m41s para José Manuel Fuente, que pareceu ter a Vuelta controlada a partir daí. Mas no último dia, um contrarrelógio de 35,9 km em San Sebastian, Agostinho deixou-o a 2m24s e perdeu por 11 segundos. Uma diferença curta e polémica, pois sempre se constou que Fuente perdera ainda mais tempo e que os espanhóis, na altura sob a ditadura de Franco e de relações tensas com Portugal, que tivera a Revolução de Abril dias antes – a Vuelta disputava-se então na primavera e começara a 23 de abril de 1974 –, nunca poderiam deixar ganhar um corredor do país vizinho.