Sanções desportivas não são prova de "mudança sistémica" nas instituições.
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As sanções desportivas que as instituições internacionais decidiram aplicar à Rússia, na sequência da investida militar em solo ucraniano, não mostram uma mudança de atitude duradoura face ao desrespeito de Estados pelos direitos humanos, alerta o especialista Francisco Pinheiro.
Segundo o especialista em História do Desporto da Universidade de Coimbra, os boicotes a Jogos Olímpicos, por motivos geopolíticos, são ocorrências relativamente comuns, com uma "ação pedagógica" por vezes empregue pelo Comité Olímpico Internacional (COI).
"O desporto, em geral, sempre se tentou reger por uma ideia que depois acabou por nunca aplicar: que o desporto tem o seu caminho, a sua área, independentemente da política", comenta.
Pinheiro aponta para "mega eventos desportivos na Rússia muito recentemente", como os Jogos de Inverno Sochi2014 ou o Mundial2018, momentos que são "usados como ferramentas para o posicionamento ao nível da geopolítica internacional".
"Não é por acaso que um país com profundos problemas do ponto de vista da igualdade, direitos civis... muitas organizações levantam muitas questões ao Catar, e a FIFA, desde que anunciou, sabe disto e identificou estas questões, mas não teve problemas em escolher aquele país como organizador" do Mundial'2022, acrescenta.
O isolamento da Rússia devido à investida militar em solo ucraniano, e da "cooperante" Bielorrússia, nota-se de forma generalizada na retirada de eventos e suspensão de participação das suas equipas, seja no apuramento para o Mundial2022 ou no Mundial de voleibol, que estava marcado para decorrer em 10 cidades russas este ano, com atletas a competir "sem bandeira" e com estatuto neutro.
O especialista vê no COI e na FIFA organizações que "historicamente nunca condicionaram muito as suas agendas pela questão política inerente aos países" que recebem competições, "e isso diz muito das instituições".
"As sanções à Rússia fazem todo o sentido, como é óbvio. Mas as instituições deviam ir muito mais além do que meras sanções. Deviam repensar-se desse ponto de vista, mas tenho sérias dúvidas. As instituições têm uma agenda, do ponto de vista organizativo, muito dependente da colaboração de um conjunto de países, e historicamente olharam para o lado para depois não implicar a dimensão interna de cada um dos países", analisa.
O posicionamento recente da Rússia a partir do Mundial2018 e de Sochi2014 é uma fórmula replicada pela China, com Pequim a receber os Jogos Olímpicos de verão em 2008 e já este ano os de inverno, mas também o Qatar, que "não tem nenhum objetivo desportivo" ao receber o Campeonato do Mundo, sendo antes um exercício de "geoestratégia do país em termos de posicionamento naquela área geográfica".
Sem esperança numa mudança sistémica, o especialista frisa ainda assim a necessidade "de uma agenda mais clara e transparente para estas situações".
Questionado sobre se o mundo do desporto voltará ao "normal" após as sanções, sem mudanças sistémicas provocadas pela guerra, Francisco Pinheiro nota que, "historicamente, será isso que acontecerá", porque "é muito difícil que estas instituições utilizem uma agenda de maior transparência, rigor e preocupação com direitos humanos".
"Os países utilizam como ferramentas os grandes eventos desportivos, que estão ao serviço da consolidação destes países. As instituições acabam por aceitar estes países, muitas vezes sem se debruçarem sobre as questões. A FIFA raramente fala dos direitos humanos, quer em relação à Rússia quer em relação ao Catar, e abdica disso em prol de um discurso totalmente diferente", refere.
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Assim, "só quando há um acontecimento como este, que ultrapassa em muito esta dinâmica, de parceria entre os países e estas instituições desportivas, é que causa aqui um mal-estar que leva a situações como esta, que fazem todo o sentido mas deviam fazer parte de agenda de transparência e rigor das próprias instituições".
Um outro exemplo de um país à procura de se "afirmar no panorama internacional como emergente" foi o Brasil, que recebeu o Mundial'2014 e os Jogos Olímpicos Rio'2016, outro sinal de posicionamento estratégico.
Este hábito vem de trás, desde Berlim'1936, "na grande plenitude do regime nazi", dois anos depois do Campeonato do Mundo de futebol na Itália de Mussolini, o que reflete uma "agenda quase cultural das próprias instituições" de olhar para o lado, sem um efetivo "livro de ética e moral associado".
"A preocupação é, sobretudo, económica, e isso tem determinado a agenda destas instituições. Se a partir de um fenómeno alteram essa cultura? Tenho sérias dúvidas. A História demonstrou que isso nunca aconteceu, ou se aconteceu ainda não é totalmente percetível", atira.
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Ainda assim, avisa, tanto o COI como a FIFA, e outras instituições desportivas de cúpula, "não são estáticas, tendo avanços e recuos", e desta feita houve um posicionamento "mais de forma imediata ou mais lenta".
"Houve uma reação da comunidade desportiva internacional a este fenómeno, e isso é de louvar. Agora, que isso implique uma vaga de fundo de mudança ou consciencialização destas instituições para uma mudança profunda da forma como operam, tenho sérias dúvidas", remata.