Os atletas de alta competição com cursos superiores são cada vez mais comuns e Medicina é a preferência de muitos. Disciplina e espírito de sacrifício são os segredos
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A vida de um atleta de alta competição tem prazo de validade e os salários, na maioria das modalidades, estão longe de garantir um futuro desafogado. Por isso, há cada vez mais atletas a investir na formação académica, mesmo tendo de conciliar os estudos com treinos e jogos.
Além da opção óbvia que é a formação em Desporto, há muitos a optar por Medicina, mesmo sabendo ser dos cursos mais exigentes. Francisca Laia, Pedro Seabra e Ricardo Pesqueira contaram a O JOGO como o conseguiram.
Os agora médicos, todos brilhantes nas suas modalidades - só Laia continua no alto rendimento, procurando ir aos Jogos de Paris'24 -, revelaram todos o mesmo "segredo" para completarem um curso difícil: os atletas têm disciplina, espírito de sacrifício e superação, além de gostarem... de bons desafios.
Francisca Laia: "Houve dias em que chorei e deixei de treinar"
A canoísta de 28 anos, que já foi vice-campeã mundial e tem uma participação olímpica - Rio de Janeiro"2016 -, divide o seu tempo entre o Hospital Distrital da Figueira da Foz e treinos bidiários. "Não queria ser médica. Mas sabia que queria ter contacto com pessoas, e foi por aí que surgiu a Medicina", contou Francisca Laia, que entrou no curso beneficiando do estatuto de alta competição, adquirido após o bronze em K1 200 metros no Europeu de juniores e sub-23, em 2011.
Gerir um curso tão exigente com a carreira de atleta foi "duro", mas compensador. "Houve dias em que chorei, que deixei de treinar, que deixei de ir às aulas. Mas no final vale a pena", afirmou. Agora o foco, em termos competitivos, está em marcar presença "nos Jogos Olímpicos de Paris"2024", com a consciência de que o futuro passa por ser médica a tempo inteiro. "Será difícil deixar o desporto e as suas rotinas, mas em Portugal não há garantias de rendimentos no pós-carreira, por isso a medicina será o meu sustento e o meu futuro", atestou.
Ricardo Pesqueira: "Foi bastante difícil deixar o andebol"
Quem já se dedicou em exclusivo à medicina foi o até ao ano passado andebolista Ricardo Pesqueira.
"Ainda não é fácil para mim falar sobre a forma como deixei o andebol. Foi em fevereiro de 2020. Nessa fase ainda considerava continuar em Portugal ou ter uma experiência lá fora. Queria também ser pai e acabei por tomar a decisão. Se foi a forma mais fácil de ter deixado, não, de todo; foi bastante difícil. Na altura tinha a ilusão de conseguir terminar a carreira no Águas Santas, mas acabei por ir para Coimbra e tornou-se completamente impossível", revelou o enorme pivô (1,98 m), que começou no clube maiato, mas passou por FC Porto, ABC e Benfica, tendo ganho uma Taça Challenge e três títulos nacionais. Uma lesão num olho, em 2016, não deixou boas memórias ao internacional. "Tive um descolamento grave da retina e muita sorte ao não ficar cego. Isso talvez tenha tido algum impacto na decisão", admitiu.
Pesqueira tirou o curso no Porto e precisou de utilizar o estatuto de alta competição. Hoje não se arrepende da opção. "A carreira de um atleta, por muito boa que seja, é sempre efémera. Está sujeita a muitas mudanças e é bom ter a segurança de saber que, quando se termina a carreira desportiva, há outra à espera", referiu. Agora com 31 anos continua ligado ao clube do coração, atualmente como membro da direção do Águas Santas e dando um contributo na formação.
Pedro Seabra: "Se continuasse a jogar perdia a vaga de ortopedia"
Pedro Seabra Marques, amigo e antigo colega de Pesqueira, seguiu-lhe os passos e deixou o andebol em maio deste ano.
"Infelizmente, Portugal não está preparado para ter pessoas de excelência em duas áreas, particularmente no desporto. Deixei de jogar apenas porque não me era possível prolongar mais a licença sem vencimento sem perder a vaga de ortopedia no hospital", lamentou o aveirense de 32 anos, que começou no São Bernardo e passou por Sporting, ABC, Benfica e Águas Santas, ganhando duas Taças Challenge e um campeonato.
Estar ligado à saúde sempre foi um objetivo do central que foi 15 vezes internacional, tendo a Medicina entrado na sua vida "naturalmente". Seabra começou por estudar em Coimbra, sem qualquer estatuto, mas teve de o utilizar para se transferir para a Universidade do Porto. "O curso exigiu muita dedicação. Tenho plena convicção de que sem o desporto não teria conseguido um percurso académico melhor", afirmou.
Júlio Ferreira: "Recuperava o sono durante as viagens para as competições"
Campeão nacional e europeu de taekwondo em -80 kg, o bracarense Júlio Ferreira optou pelo curso de Arquitetura para complementar a carreira desportiva.
"Sempre tive algum jeito para o desenho e alguma dose criativa, que já se demonstrava no taekwondo. Por isso, optei por estudar para ser arquiteto", contou o internacional, que entrou na modalidade por recomendação médica. "Tinha 6 anos quando, numa consulta com o médico de família, os meus pais referiram que eu tinha dificuldade em me concentrar na escola e era irrequieto. O médico aconselhou a prática desportiva e tive a sorte de, na altura, ter do outro lado da rua o ginásio Koryo. Era o melhor clube de taekwondo da altura", contou.
Tendo períodos com viagens para o estrangeiro todas as semanas, em busca de pontos do ranking olímpico, conciliar isso com os estudos chegou a ser difícil. E Júlio Ferreira ganhou a fama de dormir sempre que viajava, gerando brincadeiras dos colegas. "O curso exigia muito tempo fora do horário curricular e isso resultou em muitas e consecutivas noitadas. Sempre que podia, encostava a cabeça e tentava recuperar as horas de sono perdidas. Hoje em dia, não só tenho horas explícitas para dormir como também já não adormeço em qualquer lugar", garante.
Neste momento, e estando à procura de estágio profissional, só pode treinar taekwondo duas horas por dia.
Diogo Seixas: "Sou fisioterapeuta das 8h00 às 17h00, jogador de hóquei em patins até às 22h30"
Diogo Seixas, jogador de hóquei em patins no HC Braga, "nunca tinha pensado ser fisioterapeuta". "O gosto nasceu quando, ao longo da minha carreira, recorria aos serviços de alguns deles", contou o internacional português formado no FC Porto, explicando que "foco e ambição" são o segredo para conciliar os dois mundos.
"Estou a trabalhar numa clínica de fisioterapia das 8h00 às 17h00. Depois vou até casa, para conseguir descansar um pouco antes de voltar a sair para o treino, e chego por volta das 22h30. É uma rotina dura e bem preenchida, mas felizmente na clínica as pessoas facilitam sempre que é preciso", contou.
Nuno Rêgo: "Sempre quis ser advogado e saída do andebol foi pensada"
Passou de jogador profissional de andebol, durante 25 anos, a ser conhecido como o doutor Nuno Rêgo. Esta é a história de um internacional português que passou pelos maiores clubes nacionais, e que decidiu, em 2005, apostar a 100 por cento na carreira de advogado, uma profissão que sempre o apaixonou.
"Sempre quis ser advogado. Deixar o andebol foi uma decisão previamente pensada e planeada, três anos antes. Mesmo com contrato de atleta profissional no Águas Santas, estava a começar a ter sucesso na minha carreira de advogado, a qual já me exigia muito tempo. Teria uns 34 anos, julgo que parei no momento e na idade ideal", afirmou, considerando que a sua experiência enquanto atleta foi fundamental para o percurso que seguiu.
"Ser atleta profissional dá-nos uma especial capacidade de trabalho e de sacrifício, dá-nos rigor em cumprimento de ordens e horários, e ainda espírito de equipa. Além disso, e porque atuo na área do Direito Desportivo, deu-me a possibilidade de compreender o pensamento, as preocupações e os anseios dos meus clientes. Como já muitos me disseram: "Doutor, nós falamos a mesma língua: a linguagem do desporto", completou.