ARGUMENTO ORIGINAL - Vitaly Scherbo, o homem das seis medalhas que desistiu de tudo por amor.
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Ou terá sido por sentimento de culpa? O debate persiste até hoje, depois da denúncia de violação da também ex-ginasta Tatiana Gutsu, que em 2017, no auge do movimento #MeToo, veio pelo menos chamuscar a imagem de Vitaly Scherbo.
Encarado por muitos como o maior ginasta de todos os tempos, incluindo dez medalhas olímpicas (seis de ouro), 23 medalhas em campeonatos do mundo (doze de ouro) e duas exibições de "10 perfeito", Scherbo era então consensual, tanto no mundo da ginástica como nas sociedades civis norte-americana e bielorrussa. E talvez não tenha, realmente, um percurso impoluto. Mas também por isso dava um filme. Porque conquistou o mundo depois de - talvez - ter exercido a violência e porque, quatro anos depois, desistiu de tudo, ou de quase tudo, em virtude da paixão pela mulher que então convalescia de um grave acidente automóvel.
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"Herói ou vilão?", perguntaríamos nós. Como perguntaríamos sobre Moby Dick ou o próprio Ahab. Como perguntaríamos sobre Holden Caulfield, o Dr. Frankenstein ou mesmo Anna Karenina.
Vitaly Scherbo nasceu em Minsk, na então província soviética da Bielorrússia, em 1972. Era um jovem ativo mas indomável e, quando o viu completar sete anos, a mãe, Valentina, inscreveu-o na ginástica, na esperança de que aprendesse a disciplina. Continuou indomável mas tinha talento, pelo que os treinadores da escola onde praticava o enviaram para a academia provincial.
Aos 15 anos, Vitaly chegou à seleção soviética, mas continuou a representar o país em exclusivo no escalão de juniores. Tinha oscilações de forma, tanto era capaz do sublime como de erros inesperados, e ademais lidava mal com a derrota. Sempre que perdia, zangava-se com os árbitros, os treinadores, os adversários.
Em 1989, no Japão, foi quarto classificado na Taça Chunichi, disputada em Nagoya, o que lhe valeu um lugar no Campeonato Nacional Soviético (o último com este nome) do ano seguinte. Surpreendentemente, ganhou-o, e depois ainda brilhou nos Jogos da Boa Vontade de 1990 (onde fez o seu primeiro "10 perfeito", na barra fixa) e na Taça da União Soviética de 1991 (onde fez o segundo, no cavalo com arções).
Tinha de ir aos Jogos Olímpicos de 1992, marcados para Barcelona. Contanto se controlasse, haveria pelo menos de ajudar no concurso coletivo, onde alemães e chineses disputavam a supremacia da agora chamada Comunidade de Estados Independentes. Mas, mais rigorosos, Grigory Misutin, Valeri Liukin ou Igor Korobchinsky continuavam a levar mais esperanças ao Comité Olímpico moscovita.
Durante um mês, Vitaly velou sobre aquele coma, sentado ao lado da cama de hospital onde Irina convalescia.
Extraordinariamente, Vitaly Scherbo ganhou seis das oito medalhas de ouro em jogo em Espanha: cavalo, argolas, paralelas, barra, combinado e competição por equipas. Foi a mais impressionante exibição alguma vez produzida por um ginasta em Jogos Olímpicos, e em nenhuma das edições do evento alguém ganhou mais medalhas do que ele, a não ser os nadadores Michael Phelps e Mark Spitz.
Vitaly estava no topo do mundo, e os êxitos continuaram nos anos seguintes, ainda pela CEI e, a partir de certa altura, pela Bielorrússia. Entretanto, porém, a situação em Minsk tornou-se caótica. Scherbo casara-se logo em 1992 com Irina, ex-ginasta convertida em artista de circo. A casa de ambos foi assaltada várias vezes, dinheiro, joias e diferente memorabilia olímpica - mas não as medalhas de ouro, conservadas em casa dos pais - desapareceram.
O casal decidiu mudar-se para os EUA, onde viveu primeiro na Pensilvânia e depois no Nevada. Além do mais, o ginasta poderia tirar melhor partido dos seus feitos, como, aliás, acontece até hoje (é dono de uma academia de ginástica em Las Vegas). Só que, no início de 1996, a tragédia bateu-lhe à porta: Irina teve um acidente de automóvel e caiu em coma, com múltiplas fraturas e hemorragias e um prognóstico de sobrevivência de 1 para 100.
Durante um mês, Vitaly velou sobre aquele coma, sentado ao lado da cama de hospital onde Irina convalescia. Abusou do álcool e ganhou sete quilos. Milagrosamente, a mulher acordou ao fim de um mês. E, ao olhar o estado do marido, a sua forma física e o seu estado anímico, forçou-o a voltar aos treinos, pedindo-lhe que ganhasse uma medalha de ouro em Atlanta"1996. Vitaly deu tudo, ganhou quatro medalhas de bronze e foi a personalidade mais aplaudida na gala final da competição.
Prometeu então obter o ouro que Irina lhe pedia no Mundial de Lausana do ano seguinte. Só que teve de ser operado a um ombro e, logo após recuperado, partiu uma mão num salto de cavalo. Não participou nesse Mundial nem voltou a competir.
Foi adicionado ao Hall of Fame da ginástica em 2009 e manteve-se estimado por todos até que, há dois anos, Tatiana Gutsu o acusou de a ter tentado violar em 1991, quando ela tinha 15 anos e ele 19. Foi a mãe de Scherbo, Valentina, quem se encarregou de desmentir a acusação. Infelizmente para esta - e para o filho -, Vitaly tinha produzido em 2010 declarações de certa prepotência e indiscutível machismo: "Habituei-me a conseguir das mulheres aquilo que queria. Felizmente, conheci a Irina. Eu e a Irina só fizemos sexo depois de casarmos. Foi por isso que casei com ela."