O "General" que fugia das rusgas, treinava com botas da tropa e não ficou no FC Porto
DESPORTO EM TEMPO DE GUERRA - Referência incontornável do basquetebol angolano, Miguel Lutonda passou pela guerra civil com uma bola nas mãos.
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Em dezembro de 2021, Miguel Lutonda faz 50 anos. Em Angola, o antigo base do 1.º de Agosto foi figura de primeira linha, para quase todos, o melhor depois de Jean Jacques e José Carlos Guimarães.
Lutonda não deu o salto para a Europa por mero acaso, mas foi colecionando títulos atrás de títulos, individuais e coletivos. O "General", como é conhecido devido à liderança dentro do campo e à longa ligação ao 1.º de agosto, clube militar, deixou marcas profundas no basquetebol africano. Além dos títulos nas camadas jovens, ganhou onze campeonatos nacionais, dois no ASA e nove no 1.º de Agosto; oito Taças de Angola e o mesmo número de Supertaças. Foi Campeão Africano das Nações em cinco ocasiões e, pelos "militares", ganhou seis edições da Taça de Clubes Africanos. A nível individual foi MVP (Jogador Mais Valioso) nos Afrobaskets de 2001 e 2003.
Retirou-se da competição em 2012, a caminho dos 41 anos, deixando para trás uma longa história na modalidade.
O arranque não foi, todavia, premonitório
Aos 15 anos, desafiado por um colega da escola a "entrincheirar-se" nas fileiras do Desportivo da Banca, foi atirado para a equipa feminina. Não bastava ser alto e esguio, era preciso um certo jeito, alguma técnica... Por lá andou um bom par de meses. A passagem pelo terreno feminino tornou-o mais forte e hábil. Até os mais distraídos perceberam a evolução. O regresso à equipa masculina concretizou-se, finalmente. Só que pelo meio, havia o incontornável serviço militar e Miguel Lutonda não escapou. Angola vivia um período conturbado: a guerra civil.
"Ser jogador de basquetebol nunca fez parte dos meus sonhos. Quando fui para o Desportivo da Banca, não sabia o A, B, C, do basquetebol: o drible, o passe, o salto, o lançamento na passada. Naquela fase, o treinador entendeu que eu não tinha qualidade e sugeriu que treinasse com a equipa feminina. Fiquei por lá durante quatro/cinco meses. Até que um dia, o mesmo treinador necessitava de mais um jogador para fazer um 5x5 em cadetes masculinos e chamou-me. A partir daí nunca mais saí da equipa", conta o antigo craque.
Concluída a aprendizagem, partiu para nova aventura, no Grupo Desportivo da Nocal, cervejeira angolana. "Vivia com muitas dificuldades e o ordenado na Nocal eram cinco grades de cerveja por mês. A primeira coisa que fiz quando recebi as primeiras foi trocá-las por um par de ténis e um colchão no mercado do Roque Santeiro. É que eu treinava habitualmente com umas botas da tropa, que até não se adaptavam mal ao piso do nosso recinto." Por essa altura, a comida também escasseava e muitas vezes Lutonda alimentava-se apenas de "arroz com um pouco de sal...", recorda atira o antigo base. Mas nem isso lhe consumia o desejo de treinar: "Andava cerca de vinte quilómetros para treinar e ainda tinha de esconder-me nos becos para fugir às rusgas. Como sabem, nessa altura havia patrulhamento nas ruas", atirou.
Três mil dólares por época e lá veio o apartamento
Com o nascimento da primeira filha ainda muito jovem, decidiu partir para nova aventura à procura de melhores condições de vida. A paragem seguinte, foi o ASA, que lhe ofereceu melhores condições. "A casa dos meus pais era muito pequena e eu já tinha família. A Nocal não tinha dinheiro e o ASA ofereceu-me três mil dólares por época. Assinei por três anos, mas naquela altura até assinaria por quinze. O que eu queria mesmo era comprar um apartamento. Em três anos, ganhámos dois títulos e fui para o 1.º de Agosto, clube de meu coração."
Cabeça quente num dérbi e empurrão ao compadre
Jogador com um comportamento exemplar em quase todas as partidas, Lutonda acabou por falhar num dérbi. "Foi num jogo entre o 1.º de Agosto e o Petro. Não concordei com uma decisão do árbitro e empurrei-o. Sei que tenho responsabilidades, há muitos miúdos que querem ser como eu e dei um péssimo exemplo. Arrependi-me imediatamente do meu ato. Aliás, o árbitro é meu compadre", explicou a antiga estrela.
Recusou casar e não ficou no FC Porto
Terminada a época no ASA e já com o 1.º de Agosto de olho, Miguel Lutonda recebeu um convite para treinar durante alguns dias no FC Porto. O base aceitou o desafio, meteu-se num avião e chegou a Portugal. O problema foi depois... "Ainda treinei durante uma semana, gostaram muito, quiseram inscrever-me mas tinham o problema do excesso de estrangeiros. Propuseram-me que me casasse com uma portuguesa para adquirir a nacionalidade portuguesa, mas eu não quis pois tinha a minha vida em Angola. Regressei e fui para o 1.º Agosto. Posso dizer que por um triz não fui para o FC Porto", comentou, recordando outras duas situações em que poderia ter saído. "Também fui convidado por um clube turco, mas rejeitei logo a proposta pois era para ganhar num ano aquilo que me oferecia o 1.º Agosto num mês. Tive também um convite, durante o Mundial da Grécia, para ir fazer testes aos Estados Unidos, mas lesionei-me e desfez-se o sonho de estar a NBA."