Rúben Pereira foi, aos 30 anos, o mais jovem a ganhar a Volta a Portugal como diretor-desportivo e dos raros que não foi ciclista profissional. Fala abertamente de tudo e faz revelações sobre o homem do momento.
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É de S. João de Ver, onde vive numa rua de ciclistas. Entrou na modalidade como o "filho do Carlos Pereira", principal responsável da Glassdrive-Q8-Anicolor, surpreendeu ao tornar-se diretor-desportivo em 2019 e depressa espantou. Rúben Pereira criou um espírito muito próprio entre os corredores e taticamente já fora uma revelação há um ano, ao desesperar a W52-FC Porto com as marcações homem a homem que só não renderam a Volta na Portugal devido à queda de Mauricio Moreira no último dia. Este ano esmagou e encheu o pódio, com Moreira, Frederico Figueiredo e António Carvalho.
Da forma como dominou a Volta, deixou a sensação de que desafiante foi a do ano passado?
-O Nuno Ribeiro, apesar de tudo, é um grande diretor-desportivo e os ciclistas sabem-no. Taticamente é muito bom e exigia-nos muito. A nossa marcação homem a homem obrigou-nos a muito trabalho, mas a guerra foi igual porque percebi o segredo do FC Porto...
... Que era qual?
-Obrigar as outras equipas a trabalhar antes dos momentos decisivos, jogando muito com planos B. Os outros tinham de se desgastar atrás desses planos B, como o Ricardo Mestre, que lhes deu vitórias em fugas não controladas. A marcação homem a homem podia funcionar contra isso, tendo nós uma equipa formada do zero, com grandes ciclistas que andavam perdidos, como o Rafael Reis, ou o Frederico Figueiredo, que tem uma dedicação incrível e era visto como alguém sem iniciativa. No primeiro estágio do ano passado vi que tinha uma grande equipa. Já com o Mauricio Moreira, que foi uma contratação com história incrível. Ele mandou-me uma mensagem estava ainda na Caja Rural. Tinha-o visto na Volta ao Alentejo, a fazer quarto no contrarrelógio, e ia para uma equipa de divisão inferior. Tentei perceber porquê.
A mensagem era a pedir emprego?
-Estava à procura de emprego e o empresário dele contactou-me. Quando disse que o ia contratar, até na equipa achavam que ele não tinha qualidade. Respondi-lhes que podia ganhar uma Volta a Portugal. Já o Rafael Reis, que estivera com ele na Caja Rural, me dissera que tinha uma qualidade enorme. Achei que tinha capacidade para fazer dele um grande ciclista, que lhe podia dar o que ele precisava: um acompanhamento diário, ser um diretor que se dedicasse a ele, faltava-lhe carinho. Ele tinha uma vitória em França frente a equipas do World Tour...
Tendo dúvidas e défices de confiança, não é um campeão muito diferente?
-É um campeão desgastante! Tanto eu como os colegas temos de lhe dar moral. Por isso acho que não iria vingar em outra equipa. Precisa de sentir que estamos com ele, temos de o motivar. Nele, a diferença entre ganhar ou perder é muito reduzida: é eu dizer-lhe "vais ganhar", ou não lhe dizer nada. Foi no Grande Prémio do Douro do ano passado que lhe disse que ia ganhar a Volta. Sempre o vi com todas as características do David Blanco, mas algum excesso de peso. Além, claro, de o Blanco ser um "matador" e o Mauricio mais débil psicologicamente. Mas o seu "motor" é incrível...
É isso que o destaca?
-Quando ele chegou à equipa fizemos um estágio em Castelo de Paiva e a meio o Mendonça perguntou-me de onde vinha ele. O Mauricio tinha descarregado a equipa inteira numa subida. A qualidade viu-se no primeiro treino. Além disso, tem um companheirismo que faz os colegas renderem-se. Ele prefere trabalhar a ganhar, porque quando se mete pressão fica nervoso. Por ele ser assim é que o Fred fez o que fez na Volta a Portugal.
Não teve a tentação, na Senhora da Graça, de lhe dizer "Fred vai embora"?
-Tive. Ele correu comigo, é da minha geração, meu amigo há 15 anos, meu vizinho. O mais difícil foi até o contrarrelógio, que fiz atrás do Frederico, alegre por saber que íamos ganhar e triste por saber que ele perderia a amarela. Mas o que aconteceu foi opção dele. Com a sua decisão ganhamos uma equipa e ele provou ser mais do que um ciclista.
"Rótulo do doping está errado"
Falou-se de doping antes da partida da Volta, o domínio da Glassdrive-Q8-Anicolor fez regressar o tema. Rúben Pereira achou injusto. "O ciclismo foi bombardeado com o tema. As regras são para cumprir, temos tolerância zero na equipa. Mas algo foi esquecido: os ciclistas envolvidos foram bons desde as camadas jovens. Sem eles em prova, era de estranhar se a equipa que lutava com eles não fosse dominadora. Pode parecer duro, mas fazem falta equipas a dar boas condições. Não se entende que a equipa que gasta 850 mil euros, ou 1,2 milhões, como a W52-FC Porto, tenha um rival que gasta 90 mil. Não posso concordar que analisem ciclismo metendo o rótulo do doping, quando existem diferenças destas. Há casos isolados, como há em todas as modalidades, mas não vamos descredibilizar quem trabalha bem", diz o diretor-desportivo.
"Temos de nos focar no retorno"
"O nosso ciclismo aporta muito mais valor do que gasta. O nosso "estádio" é o maior que existe. Temos marcas como Continente, Jogos Santa Casa, Glassdrive, Sicasal, que procuram valores como seriedade, profissionalismo, trabalho, união de equipa. Não esperam que sejam todos vencedores. A nossa equipa ganhou a Volta, mas a mensagem que passou foi a da união do grupo", diz Rúben Pereira, sobre a forma de restaurar a confiança na modalidade. "As equipas têm de se desligar mais do resultado e focar-se no retorno. Temos equipa há 26 anos e até agora só tínhamos ganho uma Volta".