#desportoemtempodeguerra >> Esta foi o americano quem a contou e pode estar um pouco fantasiada, porque o alemão foi preso e executado durante a II Guerra Mundial por tropas... americanas
Corpo do artigo
São fantásticas a maioria das histórias dos anti-heróis, podendo-se dividi-las entre obras geniais ou feitos extraordinários que deixaram os autores no anonimato ou gestos altruístas, alguns dos quais simples mas capazes de mudar o rumo história. Luz Long insere-se no segundo lote. Foi ele (terá sido ele...) quem permitiu a Jesse Owens conquistar a quarta medalha de ouro nos Jogos Olímpicos de Berlim, em 1936. A alternativa era... ganhar-lhe. Owens era um negro americano que desafiava a supremacia branca mesmo à frente de Adolf Hitler, Long era o protótipo da raça apurada, criado para ser e morrer nazi, como aconteceu. A pista fez dois amigos para a vida e para perpetuar depois da morte.
Jesse Owens, o velocista negro que desafiou Hitler, tinha vencido as provas de 100 e 200 metros planos, bem como a estafeta 4x100 metros
Jesse Owens, o velocista negro que desafiou Hitler, tinha vencido as provas de 100 e 200 metros planos, bem como a estafeta 4x100 metros. Para fazer o pleno faltava-lhe limpar o salto em comprimento. Era recordista mundial e por isso favorito, mas todos os atletas têm um dia mau e Owens estava a ter o dele na qualificação para a final. O primeiro salto deixou-o logo nervoso. Fê-lo de forma relaxada pensando tratar-se de um exercício de aquecimento e ficou surpreendido quando o juiz o validou como tentativa. O segundo salto foi nulo, pisou a tábua de chamada e a seguir foi sentar-se no relvado de cabeça baixa, desanimado.
Junto a ele na pista, estava um advogado alemão, de 23 anos, Carl Ludwig Long, conhecido por Luz Long, adversário de respeito empurrado pelos aplausos de 110 mil compatriotas nas bancadas
Junto a ele na pista, estava um advogado alemão, de 23 anos, Carl Ludwig Long, conhecido por Luz Long, adversário de respeito empurrado pelos aplausos de 110 mil compatriotas nas bancadas. Ele era recordista europeu e esperança nazi para baixar a crista ao americano negro e naquela eliminatória acabara de bater o recorde olímpico. Owens precisava de saltar 7,15 metros para garantir o apuramento para a final. Faltava-lhe um salto e tremia como varas verdes. Foi quando Long entrou em cena.
Um quadro destes tem mais piada quando é pintado com realismo. Foi o próprio Jesse Owens quem contou a história a Kai Long, filho de Luz Long, quando o visitou em Berlim, no ano de 1964. "O teu pai veio em meu auxílio. Ajudou-me a medir um pé de distância para a tábua e o mesmo no sítio de onde costumava iniciar a corrida. Fizemos marcas. Consegui acertar no sítio certo e foi assim que obtive a qualificação". Salto 7,25 metros, o sificiente.
A amizade entre ambos começou nesse gesto e perdurou pelo tempo possível, porque poucos anos depois Luz Long morreu na II Guerra Mundial a combater do lado das tropas nazis. Mas continuemos com a competição entre ambos no majestoso estádio olímpico. Passemos à final.
À segunda tentativa Jesse Owens passou para a frente com um salto de 7,87 metros. O alemão levantou o estádio logo a seguir quando igualou a marca na penúltima tentativa. No derradeiro ensaio, Long fez um salto nulo e Owens voou para uns espantosos 8,06 metros. Quase não teve tempo de sair da caixa de areia e já Long o abraçava. "Foi preciso uma grande coragem para se aproximar de mim à frente de Hitler. Podem derreter-se todas as medalhas e troféus que não serão suficientes para a amizade de 24 quilates que sinto por ele neste momento", reagiu na altura Jesse Owens.
O gesto de Luz Long não passou despercebido entre os eufurecidos líderes do partido nazi. Contou mais tarde a mãe de Luz que o secretário especial de Hitler, Rudolf Hess, o avisou para "nunca mais voltar a abraçar um preto".
O gesto de Luz Long não passou despercebido entre os eufurecidos líderes do partido nazi. Contou mais tarde a mãe de Luz que o secretário especial de Hitler, Rudolf Hess, o avisou para "nunca mais voltar a abraçar um preto".
Long e Owens nunca mais se viram depois desses Jogos Olímpicos da propaganda nazi, mas trocavam correspondência. Owens percebeu rapidamente que no regresso aos Estados Unidos as medalhas de ouro não haviam mudado a segregação racial. Era um desempregado famoso. "Está toda a gente interessada no Jesse Owens que ganhou as medalhas mas ninguém lhe quer dar trabalho", queixava-se.
A Long não faltava ocupação. Foi para a guerra e por lá morreu em 1943, quando as tropas aliadas tomaram a Sicília: foi preso e executado no Massacre de Biscari (crime de guerra das Forças Aliadas atribuído às tropas norte-americanas). Um ano antes, Long percebera que o fim poderia estar próximo.
Em 1942, Owen ficou em choque quando abriu o sobrescrito que continha a missiva do amigo alemão. "O meu coração diz-me que esta será possivelmente a última carta da minha vida. Se for assim, imploro-te uma coisa: quando a guerra terminar, por favor viaja até à Alemanha, encontra o meu filho e conta-lhe sobre o pai. Conta-lhe da altura em que a guerra não nos separava e conta-lhe que as coisas podem ser diferentes entre as pessoas neste mundo".
Tinham passado 21 anos desde a morte de Long e 28 sobre os Jogos Olímpicos quando Jesse Owens satisfez o pedido, como se cumprisse uma promessa que não fez. Encontrou-se com Kai Long no estádio e contou-lhe as histórias do pai, o homem que o obrigara a dar o maior salto da carreira depois de o ter posto no caminho do apuramento quando eram adversários.
E se todo esta história contada pelo próprio Jesse Owens não tiver sido exatamente assim? O historiador Tom Eker contesta-a, confirma que os atletas ficaram amigos depois do concurso mas que o americano enobreceu e enfeitou a trama para ser simpático com Kai, que perdera o pai na guerra. Garantido é que Luz Long foi agraciado a título póstumo com a Medalha Pierre de Coubertain, galardão atribuído a atletas que tenham sido exemplos de desportivismo.
A história tem mais um capítulo. Em 2009, os Mundiais de Atletismo tiveram lugar no renovado e lindíssimo Estádio Olímpico de Berlim. As netas de Jesse Owens e de Luz Long - Marlene Dortch e Julia Long - foram as convidadas de honra para a entrega das medalhas do salto em comprimento. O ouro foi para o norte-amerciano Dwight Phillips e não havia nenhuma alemão para entrar na história.